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Direito moral do autor na era do streaming



Por Yves Finzetto e Leandro Bauch* 

Chico Buarque lançou, recentemente, uma nova música. Aqueles que acompanham a carreira do compositor sabem que, durante décadas, Chico foi acompanhado pelo baterista Wilson das Neves, falecido em 2017. Assim, uma pergunta vem à cabeça dos fãs: quem está tocando a bateria em Que Tal um Samba?

O single foi lançado diretamente nas plataformas de streaming de música. E, para os acostumados com os encartes dos CDs, uma decepção: com raras exceções, as plataformas de streaming não disponibilizam a ficha técnica dos discos ao público. Logo, aqueles que quiserem matar a curiosidade sobre quem é o novo baterista do Chico terá de buscar outra fonte.

O leitor poderá dizer: “ora, basta uma pesquisa no Google”. Neste caso, imagino que a busca, potencialmente, resolveria o problema. Porém, a mesma sorte estaria reservada para as mais de 80 milhões de músicas contidas no Spotify?

Em algumas plataformas, o problema é ainda mais grave: nem o nome do compositor das obras é divulgado. Este fato inviabiliza o reconhecimento da obra pelo público e pela crítica, o que afeta, diretamente, a carreira dos autores. Além disso, é uma flagrante violação à lei brasileira de direitos autorais – Lei nº 9.610/1998.

O Direito Autoral brasileiro ancora-se na vertente francesa, distinguindo-se da lógica do copyright norte-americano. Este privilegia o aspecto material da obra e a sua exploração econômica. O Droit D´Auteur, por outro lado, vislumbra a obra como íntima expressão do autor. Assim, tende a ser mais protetivo aos seus interesses.

Nesse sentido, a Lei de Direitos Autorais (LDA), além de reconhecer direitos de ordem patrimonial, prevê, expressamente, os direitos morais do autor. Entre eles, reivindicar a autoria da obra; conservá-la inédita; assegurar a sua integridade; modificá-la, antes ou depois de utilizada; retirá-la de circulação ou suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem; e ter o seu nome ou pseudônimo anunciado como sendo o autor quando da utilização da obra.

Este último é tradicionalmente chamado de direito de paternidade do autor[1]. Trata-se de direito inalienável, irrenunciável e imprescritível do autor de obra artística, literária ou científica ter o seu nome indicado sempre que sua criação for utilizada ou publicada, como determinam os artigos 24, II; e 27 da LDA.

Dessa maneira, há que se ressaltar que os direitos de natureza moral dos autores não podem se transferir mediante contratos de cessão de qualquer amplitude. Isso significa que, ainda que as plataformas de streaming possuam autorização para utilizar a obra, não podem deixar de cumprir a obrigação legal de informar o nome do autor da música que estão disponibilizando.

Em suma, plataformas que omitem o nome dos compositores violam de forma sistemática e reiterada a LDA. Não é exagerado dizer que a disponibilização de mais de 60 milhões de fonogramas sem o devido crédito autoral configura a maior violação de direitos autorais da história do direito brasileiro.

A LDA estabelece que a violação ao direito de paternidade do autor enseja o dever de indenizar, sem prejuízo da obrigação de divulgar a identidade do compositor. Lembremos que a legislação data do final dos anos 1990 e era aplicada, por exemplo, quando a tiragem de um CD era distribuída sem a atribuição do devido crédito.

Se a ausência da correta vinculação do compositor da obra musical, em relação às formas de distribuição de fonogramas no meio tradicional – físico -, gera o dever de indenizar, a omissão nos meios digitais merece igual reprovação. A evolução tecnológica das formas de distribuição musical não pode ocorrer ao arrepio da lei. As plataformas de streaming, em sua maioria grandes conglomerados transnacionais da área de mídia e tecnologia, possuem o dever de se adequar à legislação autoral pátria caso queiram operar no país.

Dessa forma, é bastante positiva a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que tem condenado as plataformas de streaming nos casos de violação ao direito de paternidade dos autores[2]. Que as condenações sejam suficientes para induzir as plataformas a revisarem suas práticas ou, ao menos, para reparar os danos causados aos compositores.

Em tempo, o baterista de Que Tal um Samba? é o talentosíssimo Jurim Moreira. Como diria Wilson das Neves, “Ô, sorte!”.

* Yves Finzetto é advogado, músico e produtor cultural. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Erasmus programm). Bacharel em Letras e Mestre em Estudos Culturais, com pesquisa concentrada na área de relações internacionais e políticas públicas de cultura, pela Universidade de São Paulo (USP).

* Leandro Bauch é bacharel e mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Civil e Direito Autoral.

 

[1] Partindo-se da imagem de que autores e autoras dão à luz às obras ao concebê-las e lançá-las ao mundo, talvez o mais adequado seja atualizar o conceito para “direito de maternidade”.

[2]  Apelação Cível nº1002666-16.2021.8.26.0100, Desembargador Relator Rui Cascaldi, julgado em 03/05/2022; Apelação cível nº 1125019-92.2020.8.26.0100, Desembargador Relator Alexandre Marcondes, julgado em 31/05/2022; Apelação cível 1002649-77.2021.8.26.0100, Desembargador Relator José Carlos Ferreira Alves, julgado em 12/06/2022; Apelação cível nº 1002982-56.2021.8.26.0576, Desembargador Relator João Pazine Neto, julgado em 22/03/2022; Apelação cível nº 1001110-76.2021.8.26.0100, Desembargador Relator Erickson Gavazza Marques, julgado em 05/04/2022; Apelação cível nº 1002964-35.2021.8.26.0576, Desembargador Relator Marcus Vinicius Rios Gonçalves, julgado em 18/11/2021; Apelação cível nº 1067125-64.2020.8.26.0002, Desembargador Relator Edson Luiz de Queiroz, Julgado em 03/05/2022.



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Equipe IREE

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