Em uma noite de 1999 na cidade de Buenos Aires, o público pôde presenciar o encontro de duas personalidades marcantes – e porque não dizer – vértices desse grande mosaico do mundo que entendemos como a música brasileira. Diante de um quase silêncio que não passou despercebido pela atenção de João Gilberto e seus beliscões na plateia, Caetano Veloso destilava um repertório que, com as ressalvas de sua poesia nova, do ingênuo frescor de suas harmonias, e das melodias irmãs dos cantos de ninar do Brasil, poderíamos dizer manifestar-se aquilo que assume o mais fiel nome de intimidade, herança e elo: Caetano assumia um estado contínuo da música de João, entregando assim um pouco mais do grande artista do passado para o mundo.
Na abertura de Xande canta Caetano, a voz convoca para uma atenção revivida apenas nas casas de axé, terreiros onde as vozes negras alcançam o seu mais alto grau de respeito e culto. É religiosa a maneira como se manifesta o samba nesse disco. As palavras cantadas ganham outros contornos, porque não foram escritas para as interpretações as quais agora se destinam. Ouvir letras de músicas consagradas por Caetano na voz do mais atual “velha guarda” do samba é a celebração do encontro erudito e popular em torno dos sentidos da escuta.
A faceta foi descobrir em Caetano músicas que se afastassem do que o próprio baiano já fez como samba. E nisso, inova. Quando o cavaco de Xande de Pilares introduz à capela a voz de “Muito Romântico”, em que diz “Minha palavra cantada pode espantar…”, sua interpretação inaugura um novo tempo de amizade nas relações de gêneros musicais que outrora já se encararam com muito estranhamento.
Com exceção de “Diamante Verdadeiro”, música que integra o disco Pipoca Moderna: Caetano raro & inédito 2, e onde identificamos nela as qualidades essenciais do choro, todo o disco se afasta das ideias originais do compositor baiano, o que nos surpreende com o sentimento saudoso que apenas a sonoridade do pagode pode nos causar.
Xande canta Caetano contribui para que a música do doce bárbaro adentre mais fundo a alma do brasileiro, tanto por ser incorporada às rodas de samba e choro, berço e maior segredo da convivência entre nossa diversidade, quanto por ser cantadas nas ruas por gêneros musicais que fundam, identificam e afirmam o gosto artístico e o modo de viver de um povo. Xande deu a Caetano a oportunidade de presenciar o quanto pode haver de negro na sua própria música.
Faixa a faixa provando-se como um notável intérprete, Xande de Pilares convida para ser seu par no bolero “Qualquer coisa”, ninguém menos que Hamilton de Holanda, que passa deixando uma impressão profunda de beleza e classe que permanecerá em todo o disco.
Os arranjos e direção musical são do maestro sambista Pretinho da Serrinha. Já os violões de Carlinhos 7 Cordas e Rogerinho Caetano são um concerto à parte, sendo complementados nessa grande orquestra pelas 6 cordas de músicos como Pedro Baby, Rafael dos Anjos e Marcelo Mínyos. Outra novidade é Dora Morelenbaum, integrante do grupo Bala desejo, contribuindo no coro de músicas como “Muito Romântico”, “Alegria, Alegria”, “Trilhos Urbanos (Incidental Retirantes)”, e a canção que assistimos Caetano se emocionar em estúdio, “Gente”. A produção é de Paula Lavigne.
Caetano presenciou João Gilberto transformar para sempre algumas de suas composições mais consagradas em sambas, como fez em “Coração Vagabundo”. A preciosidade intraduzível de uma interpretação que imprime seu tempo em uma canção marca para sempre o nosso modo de ouvir, recordar e transmitir essa mesma canção para os próximos, e para o futuro. Agora Caetano presencia outro sambista transformar para sempre algumas de suas composições em um dos melhores álbuns da carreira do próprio Caetano, porque ele é interpretado por um desses tantos negros que o compositor cantou. Isso celebra de alguma maneira o encontro de sambistas como João Gilberto e Xande de Pilares, ao mesmo tempo que revela o poder transformador do samba sobre tudo aquilo que ele toca.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Diego Jandira
É músico violonista, colunista, cientista social graduado pela Unifesp e pesquisador musical no projeto Violão Negro Brasileiro.
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