Nas últimas semanas o tema “voto impresso” teve, talvez, seu ápice de popularidade no debate brasileiro. Com a tramitação da PEC nº 135/2019 na Câmara dos Deputados, afloraram as discussões sobre a confiabilidade no sistema de votação eletrônico, com a urna eletrônica, utilizado para eleições no país desde 1996. Houve, inclusive, manifestações a favor da PEC antes e no dia de votação da proposta (10/08), quando a Câmara decidiu por rejeitá-la.
É evidente que essa temática tomou proporções essencialmente políticas e de estratégia eleitoral nos últimos tempos, mas existem dimensões socioeconômicas importantíssimas a serem consideradas. Essas, acredito, só podem ser efetivamente entendidas a partir de uma melhor compreensão da história dos sistemas de votação brasileiros, focando na passagem do voto impresso para o eletrônico e suas repercussões na conjuntura nacional.
Sistemas de votação e participação política andam lado a lado desde o início da República. Destaca-se, nessa questão, a inclusão da população não alfabetizada nos processos eleitorais legislativos: o requisito de alfabetização completa para votar foi introduzido em 1881 pela nomeada “Lei Saraiva” e só foi efetivamente removido em 1985. Contudo, apesar de tal formalidade, na prática os eleitores precisavam apenas assinar seu nome, de forma que o número de participantes analfabetos nas eleições já era grande antes mesmo da extinção definitiva do critério. O que realmente impactava a participação da parcela mais pobre era, na realidade, o formato da cédula.
Antes de 1958, as cédulas de eleições legislativas eram providenciadas pelos próprios candidatos e partidos, sendo necessário somente a assinatura do eleitor. Isso abria margem para a formação de “currais eleitorais” e coerção dos votantes. Foi com a introdução da cédula australiana entre 1958 e 1970 em algumas regiões do país que a conjuntura mudou. Agora, era necessário preencher a cédula à mão, incluindo o nome do candidato escolhido. Essa transformação, por um lado, aumentou a autonomia dos eleitores, por outro, impôs barreiras efetivas à participação dos analfabetos e semianalfabetos, avolumando o número de votos brancos e inválidos[1].
Foi a gradual adoção da urna eletrônica, a partir do final dos anos 90, que modificou completamente o cenário da participação política no Brasil. Com o sistema tecnológico implementado por essa, não era mais necessário escrever o nome do candidato nem assinar a cédula, o que tornou o processo eleitoral muito mais acessível. Sabendo que a parcela com baixa ou nenhuma alfabetização é composta, normalmente, pelos brasileiros de classes sociais menos abastadas, fica o questionamento: com a adoção das urnas eletrônicas e a consequente maior participação política dos grupos empobrecidos, observamos algum efeito na distribuição de recursos?
É uma questão que foi muito explorada em pesquisas de ciência política e economia política. Destaco um artigo: “Voting Technology, Political Responsiveness, and Infant Health: evidence from Brazil” do economista Thomas Fujiwara. Comparando municípios que adotaram as urnas eletrônicas com outros que não o fizeram nas eleições de 1998 (devido a limitações no número de máquinas), o autor encontra evidências empíricas de que realmente o número de votos inválidos foi reduzido nos primeiros. Ainda, esse efeito se mostrou maior, em média, para as localidades com maiores taxas de analfabetismo. Além de aumentar a participação política da parcela menos educada (e usualmente mais pobre), a pesquisa revelou que os municípios que adotaram as urnas eletrônicas apresentaram maiores índices de investimento na saúde pública[2].
Apesar dos ganhos de bem-estar não serem tão facilmente mensuráveis nesse caso, já é alguma evidência de que o aumento da participação política de grupos menos educados teve efeitos positivos na distribuição de recursos no Brasil. É uma relação bem lógica: aumentar a participação das camadas menos favorecidas nas eleições cria meios para que suas demandas se evidenciem mais no debate público.
A urna eletrônica, apesar de ser somente uma dentre múltiplas vias para tal progresso, é um facilitador para o envolvimento dos grupos analfabetos e semianalfabetos na política. Mais que isso, é um instrumento de representatividade política. Favorece reivindicações por direitos, melhor distribuição de recursos e outras demandas particulares desses grupos que não apareceriam caso eles não tivessem voz na eleição de seus governantes e legisladores.
Num país que hoje, de acordo com o IBGE, tem algo em torno de 11 milhões de analfabetos, parece fazer sentido se preocupar com a presença desse grupo nas eleições. As estatísticas da PNAD Contínua mostram uma tendência decrescente do analfabetismo brasileiro nos últimos anos. Contudo, ainda existem claras desigualdades que devem ser ressaltadas. O analfabetismo atinge uma porcentagem maior de pretos e pardos em comparação com brancos, considerando maiores de 15 anos. Para a população com mais de 60 tal discrepância é ainda maior. Além disso, observam-se desigualdades regionais alarmantes: o Nordeste lidera na taxa de analfabetismo, com 13,9%, seguido do Norte, com 7,6%, e Centro-Oeste, com 4,9%. Sudeste e Sul são as regiões com o menor índice, que fica em aproximadamente 3,3%.
Não por coincidência, a população branca e moradora das últimas duas regiões citadas coincide, em média, com a parcela mais rica e educada da sociedade brasileira. A participação política dos analfabetos e semianalfabetos, então, não é só uma questão de direito, mas de representatividade e equidade socioeconômica. É evidente que segurança antifraude ou custo de realizar uma eleição são temas importantes a serem debatidos em qualquer realidade política. Contudo, dentre todas as discussões sobre o processo eleitoral, com certeza merece destaque a questão da participação e representatividade. Afinal, esse é o objetivo do sistema democrático.
Referências:
[1] “Elite Contestation and Mass Participation in Brazilian Legislative Elections, 1945-2014”, F. Daniel Hidalgo e Renato Lima-De-Oliveira. “New Order and Progress: Development and Democracy in Brazil”, p. 241-267, Junho 2016.
[2] “Voting Technology, Political Responsiveness, and Infant Health: evidence from Brazil”, Thomas Fujiwara. Econometrica, Vol.83, nº2, p. 423-464, Março 2015.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Loreta Guerra
É graduanda em Economia na Escola de Economia de São Paulo (EESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Participou em 2020 de um estudo sobre os impactos da Lei Maria da Penha com o grupo de Jurimetria da USP e é redatora da revista estudantil da FGV Gazeta Vargas desde 2019.
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