Em seu discurso de posse como titular da pasta de Direitos Humanos e Cidadania do atual governo do presidente Lula, no último dia 03/01, antes portanto do chamado “domingo da vergonha”, como Walfrido Warde e Rafael Valim bem definiram os eventos do dia 08/01 no recente artigo Os inconsoláveis da democracia, o jurista e filósofo Silvio Almeida abraçou a todos com sua alocução, contundente e necessária, em defesa dos “grupos vítimas de injustiças e opressões”, marcando de forma inequívoca o gritante contraste em relação ao tratamento reservado à temática dos direitos humanos durante o governo anterior. Em trecho particularmente emocionante, o recém empossado ministro afirmou que os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, as mulheres, os homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, os povos indígenas, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, as pessoas em situação de rua, com deficiência, idosas, os anistiados e filhos de anistiados, as vítimas de violência, da fome e da falta de moradia, as pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, sim, todos “vocês existem e são valiosos para nós”.
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Segundo o African Journal of Social Work (AJSW), o termo ubuntu, que em zulu significa “humanidade”, pode ser definido como uma “coleção de valores e práticas que os povos da África ou de origem africana vêem como constituintes de autênticos seres humanos”. Enquanto as nuances desses valores e práticas variam de acordo com os diferentes grupos étnicos, todos eles apontam para o mesmo sentido: um ser humano autêntico é parte de um mundo espiritual, ambiental, societal, comunal e relacional mais significante. Independentemente da definição adotada, a noção de ubuntu engloba portanto a interdependência entre os seres humanos – “eu sou porque nós somos” – e o reconhecimento da responsabilidade do indivíduo para com seus congêneres e o mundo a sua volta.
Sobre esse assunto, vale a leitura da obra Referenciais da filosofia africana: em busca da intersubjectivação, do filósofo J. P. Castiano. Nela, o acadêmico moçambicano expõe de que forma se apercebeu da ausência de referenciais próprios que servissem de base para discussões sobre o pensamento africano contemporâneo. Para saldar essa dívida, ele propõe uma pedagogia e um diálogo aberto e plural sobre o que chama de referenciais de objetivação (as etnociências e a etnofilosofia), de subjetivação (a afrocentricidade e o ubuntuismo) e de intersubjetivação (a liberdade e a interculturalidade), com vistas à criação de espaços interculturais e multiculturais que permitam à filosofia africana desenvolver-se como pensamento crítico.
No trabalho de Castiano, chamou-me particular atenção a exposição de como os detentores de conhecimento africanos tornam-se objetos, ou são objetificados, a partir do discurso moderno sobre as ciências e da ideia de que os povos primitivos devem ser objeto de estudo. A luta de resistência desses sábios nativos passaria pelo desejo e esforço para inserirem-se na história do pensamento como atores e sujeitos do discurso, e para que esse processo avance Castiano propõe um aprofundamento sobre os paradigmas da afrocentricidade, com base na experiência da diáspora africana nos Estados Unidos, e da filosofia ubuntu, que tem sua origem na região sul do continente africano, mais especificamente na África do Sul.
A afrocentricidade, entre outros elementos validados pela concepção do filósofo estadunidense Molefi Kete Asante, passaria pela ideia de desmistificação da forma tradicional de interpretar os fenômenos naturais, políticos, sociais e culturais, em suma, trata-se de formular uma crítica radical à tradição eurocêntrica da prática científica e seus mitos. Já o ubuntuismo, por sua vez, teria que ver com uma filosofia que deriva de valores africanos e que se referiria ao homem negro e sua situação de opressão, pensada originalmente no contexto do apartheid sul-africano. Essa noção expande-se até abarcar a totalidade do ser africano, como proposto pelo filósofo sul-africano Mogobe Ramose, de modo que ubuntu se torne, do ponto de vista ético, ontológico e epistemológico, o fundamento da filosofia africana e do modo de viver dos povos bantus.
O instigante debate proposto por Castiano, que aborda questões de filosofia moral e política, ontologia bantu, valores tradicionais e filosofias indígenas, solidariedade social, responsabilidade civil, descolonização, entre tantas outras disciplinas, traz em seu bojo reflexões de suma importância, não apenas para a conformação da filosofia africana formal, mas também para o conhecimento de muitas das nuances presentes na sociedade brasileira contemporânea.
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Enquanto o regime racista da África do Sul consolidava a política oficial de apartheid contra a maioria negra do país, na esteira da prisão do advogado e ativista sul-africano Nelson Mandela, que em 1964, aos 46 anos de idade, foi condenado à prisão perpétua por crime de sabotagem e conspiração, no Brasil iniciava-se o longo e sombrio período de ditadura militar, com a deposição do presidente João Goulart por meio de um golpe de estado militar, ou cívico-militar.
A ditadura instaurada de 1964 a 1985 foi um período marcado por perseguições políticas, tortura e censura sistemáticas, isso tudo em um ambiente de crescimento e posterior derrocada econômica. Segundo levantamento da Comissão Nacional da Verdade, constituída apenas em 2012, o regime de exceção foi responsável pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de outras 210 pessoas, sendo a maioria durante o governo do general Médici, entre 1969 e 1974.
Durante a ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. O relatório “Brasil: nunca mais” relata 283 formas de tortura utilizadas pelo regime, entre afogamentos, choques elétricos, pau de arara, estupros, ameaças e agressões contra crianças, etc. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura, e um dos principais arquitetos e perpetuadores de sua prática foi o então coronel da ativa do Exército do Brasil, Carlos Brilhante Ustra, chefe do DOI-CODI do II Exército, entre 1970 e 1974, um dos órgãos mais violentos na repressão política. Em 2008, Ustra tornou-se o primeiro militar condenado pela justiça brasileira pela prática de tortura durante a ditadura.
Entre as milhares de vítimas desse período encontram-se os membros da família de Washington Alves, de que trato no artigo “Temos que sair do DOI-CODI”, ou Cidadanias Assimétricas (disponível em https://iree.org.br/temos-que-sair-do-doi-codi-ou-cidadanias-assimetricas/), e a então estudante de psicologia Cecília Coimbra, cujo relato foi transcrito em parte pelo poeta e ensaísta Alberto Pucheu em seu livro vidas rasteiras:
“Em agosto de 1970, fui presa e levada para o DOPS/RJ. Dois dias depois, algemada e encapuzada, fui para o DOI-CODI/RJ, no quartel da Polícia do Exército, à Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Falar daqueles três meses em que fiquei detida incomunicável sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero. A tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Em especial, a tortura perpretada à mulher é violentamente machista. Inicialmente são os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calão ditas agressiva e violentamente como forma de nos anular. Chegando ao DOI-CODI/RJ, fui levada encapuzada para o andar térreo, para uma sala: a sala de torturas, conhecida como ‘sala roxa’. De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado. Fios foram colocados e senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo. Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me. Exigiam-me, através das torturas, que eu falasse o que não sabia! No dia seguinte, não sei precisar bem, fui novamente levada para a sala de tortura e lá assisti parte da tortura que meu marido sofria: choques elétricos em todo o seu corpo. Seus gritos acompanharam-me durante anos. Era muito comum esta tática quando algum casal era preso, além de se tentar jogar um contra o outro em função de informações que pseudamente algum teria passado para os torturadores… ‘Será mesmo que ele falou isso?’… Era necessário um esforço muito grande para não sucumbirmos… ‘Se falou está louco!’… era o meu argumento, repetido à exaustão. Continuavam querendo saber sobre o sequestro do embaixador alemão. Fui novamente despida, e colocada numa sala que ficava ao lado da de torturas. Fui amarrada numa cadeira e colocaram um filhote de jacaré sobre meu corpo. Desmaiei. Os guardas que me levavam, sempre encapuzada, constantemente praticavam vários abusos sexuais… Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos… Eu me sentia desintegrar: a bexiga e o ânus sem nenhum controle… ‘Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo… Eu não estou aqui…’, pensava eu. O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorrendo meu corpo… ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que farão?’… Perco os sentidos, desmaio. Numa madrugada fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e encapuzada…. Aos gritos diziam que ia ser executada e levada para ser ‘desovada’ como em um ‘trabalho’ do Esquadrão da Morte… Acreditei… Naquele momento morri um pouco… Em silêncio, aterrorizada, me urinei… Aos berros, riram e me levaram de volta à cela… Parece que, naquela noite, não tinham muito ‘trabalho’ a fazer… Precisavam se ocupar”.
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Sabe-se que a noção de direitos humanos e da pessoa humana é uma construção social, um processo contínuo e que evolui à medida que o entendimento sobre a realidade do mundo e da condição humana se aprimora. Tendo surgido no pós-II Guerra Mundial, diante dos horrores da guerra e de seu apogeu imoral, o lançamento das bombas atômicas sobre o Japão, tais direitos refletem uma importante conquista da humanidade e se relacionam diretamente à proteção do indivíduo contra os abusos perpetrados pelo Estado, manifestando-se portanto nas esferas política, econômica e social.
A Organização das Nações Unidas (ONU) define os direitos humanos como direitos universais e inalienáveis de todos os seres humanos, inerentes a todos nós, independentemente da nacionalidade, sexo, origem étnica, cor, religião, língua, ou qualquer outra característica física ou mental. Esses direitos abrangem desde o direito à vida até tudo aquilo que permite o seu desenvolvimento e usufruto como à alimentação, educação, trabalho, saúde e liberdade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, foi um marco histórico para a proteção dos direitos humanos, sendo um compromisso aceito hoje por todos os 193 países membros da organização. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (e protocolos adicionais), ambos de 1966, constituem o que hoje se designa como a Carta Internacional dos Direitos Humanos.
Soma-se a esse arcabouço jurídico, ainda, uma série de convenções que versam sobre temas específicos, tais como discriminação racial, direitos das crianças, pessoas com deficiência, mulher e, no que toca ao presente texto, a tortura, nos termos da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1984, mas promulgada pelo Brasil, para efeitos de recepção no ordenamento jurídico interno, apenas em 1991.
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Em meados de 2021, visitamos a ilha Robben, ao norte da Cidade do Cabo, na África do Sul, onde Nelson Mandela e seus companheiros na luta contra o apartheid ficaram presos e sujeitos a trabalhos forçados em uma mina de pedra calcária por cerca de duas décadas, sem proteção alguma, no verão e no inverno, tendo direito a receber uma visita ao ano, por trinta minutos, e escrever e receber uma carta a cada seis meses, história ao mesmo tempo perturbadora e inspiracional que precisa ser contada e recontada a todos os nossos partícipes de aventura humana. E não foi por outro motivo que essa minúscula fração de terra cercada de água por todos os lados, apenas cinco quilômetros quadrados, foi inscrita na lista de Patrimônio da Humanidade da UNESCO, em 1999: transformada em museu após o fim do regime segregacionista, a ilha representa hoje o triunfo do espírito humano sobre a adversidade extrema e a injustiça.

Memorial erigido com pedra de calcário ilha Robben por Nelson Mandela e companheiros de prisão
De todas as histórias que ouvimos naquele lugar, contadas em forma de testemunhos devastadores pelos ex-detentos, que o fazem na expectativa de que os horrores do autoritarismo nunca mais se repitam, a que mais me impactou foi a perversidade e degradação do trabalho forçado. No tempo de Mandela, a pedreira já não tinha qualquer utilidade, senão a de manter os prisioneiros políticos ocupados. Para tal, os blocos extraídos em uma empreitada eram levados ao outro extremo da ilha, apenas para serem transportados de volta ao outro lado num momento seguinte, em um trabalho inócuo, repetitivo, extenuante, desumanizante, que afetava a saúde física e mental dos trabalhadores em grau inimaginável.
Após o fim do regime de apartheid, em 1994, já como o primeiro presidente negro eleito democraticamente na África do Sul, Nelson Mandela retornou à ilha Robben e colocou no centro da mina uma pequena pedra de calcário, no que foi seguido pelos demais ex-companheiros de prisão presentes. O memorial que foi ali erigido segue em pé até hoje e, a cada vez que um ex-prisioneiro morre, uma nova pedra de calcário é colocada sobre a pilha, um gesto simples, humilde, mas carregado de forte simbolismo: “vocês existem e são valiosos para nós”!
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Na noite de 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados e em rede nacional de televisão, por ocasião da abertura do processo de impeachment contra a ex-prisioneira política e até então presidenta Dilma Rousseff, jogo de cartas marcadas, o àquela altura deputado do baixo clero e hoje ex-presidente Jair Bolsonaro proferiu o seguinte voto:
“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”
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Entre o povo zulu, o maior grupo étnico presente na África do Sul, uma das expressões utilizadas para cumprimentar as pessoas é sawubona, que significa “eu vejo você”, ao que o interlocutor responde chikoba, ou “eu existo para você”. Mais do que uma saudação cordial, ambos os termos exprimem uma filosofia e uma visão de mundo pautadas na importância de reconhecer o valor e a dignidade do outro, uma perspectiva profundamente arraigada na cultura das populações nativas da região sul do continente africano.
Na afirmação do outro, na alteridade e altruísmo portanto, encontra-se uma das chaves para a salvaguarda dos direitos humanos. É como atestou o ministro Silvio Almeida em seu discurso de posse, “vocês existem e são valiosos para nós”, isto é, eu vejo seu sofrimento, suas lutas diárias, o preconceito que vocês sofrem, o racismo estrutural de nossa sociedade, o extermínio de populações inteiras, eu vejo todos vocês, eu vejo os trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, as mulheres, os homens e mulheres pretos e pretas do Brasil, os povos indígenas, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, travestis, intersexo e não binárias, as pessoas em situação de rua, com deficiência, idosas, os anistiados e filhos de anistiados, as vítimas de violência, da fome e da falta de moradia, as pessoas que sofrem com a falta de acesso à saúde, companheiras empregadas domésticas, todos e todas que sofrem com a falta de transporte, todos e todas que têm seus direitos violados, sim, todos “vocês existem e são valiosos para nós”.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Gustavo Buttes
É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.
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