Nos idos do princípio até metade do século passado, foram os violonistas negros China e Tute, os inegáveis precursores do tão presente violão de 7 cordas integrando a música popular brasileira. O “7 cordas” teve que buscar sua linguagem no idioma
musical feito aqui, e foi no encontro entre a música do saxofonista Pixinguinha e Horondino José da Silva, o Dino “7 Cordas”, que o instrumento homônimo adquiriu, à brasileira, sua identidade própria.
O presente artigo não foi escrito para ressaltar “este ou aquele” aspecto da linguagem musical pertencente, direta ou indiretamente, à contribuição negra. O racismo é uma atitude cínica e sistemática que quando afeta sujeito, o ensurdece e o cega, se recusa admitir no negro quaisquer qualidades de um ser humano. Mas quanta humanidade existe em quem conheceu a crueldade bem de perto, e mesmo assim produziu o milagre da música popular brasileira, não é?
Enquanto eu mesmo escrevo e descubro, vejo que os próprios artistas do presente ilustram e naturalmente chamam a atenção para as figuras dos grandes mestres que pisaram os primeiros caminhos em que hoje se apresenta com vigor o violão negro
brasileiro. E nesse caso, a história do músico e a do instrumento andam em paralelas.
O alto nível que apresentam muitos de nossos músicos vindos dessa “escola sem diploma” que é a rua, os sambas nos quintais, os Lp’s, as rodas de choro, merecem maior atenção como ensinamento oral, percebidos como um aspecto genuinamente
popular de ensinar e aprender o violão.
Exemplo disso é a síntese de culturas da vida urbana carioca, repleta de pretos no centro da cidade da elite branca brasileira, onde esteve, por exemplo, o exímio violonista pernambucano Quincas Laranjeiras (1873 – 1935), professor do violonista Levino da Conceição (1895 – 1955), este por sua vez, tendo passado seus conhecimentos para o atemporal Dilermando Reis (1916 – 1977).
Outro personagem interessante na irrequieta vida carioca foi Ernani de Figueiredo (?- 1917), um violonista negro concertista que após duras penas no aprendizado de violão (a ponto de achar que as dificuldades eram por conta de erros no método de
Carcassi que utilizava), apresentou-se pelo Rio e inclusive participou na organização de um concurso que ajudou na divulgação do instrumento.
Violonista e cantor, Patrício Teixeira (1893 – 1972) foi violonista negro e professor no Rio de Janeiro da grande violonista concertista e cantora amazonense Olga Praguer Coelho.
Preciso ressaltar que esses violonistas eram negros, pois talvez devido a cor de sua pele não conseguiram ser concertistas ou ter suas músicas, quando o fossem, melhor registradas.
No concurso de 1927 “O que é nosso”, realizado pelo jornal Correio da Manhã, participaram o virtuose Américo Jacomino, mais conhecido como Canhoto (1889 – 1928), a menina negra de aproximadamente 10 anos de idade Yvonne Rebello (?) e o cego Manoel de Lima (?). Nas notas de jornais da época, todas as apresentações foram de níveis apreciáveis, sendo, porém, a menina Yvonne a única a cumprir uma obra do repertório clássico, como era exigido pelo concurso.
Independente dos critérios para a premiação, pouco se sabe que junto com Anibal Augusto Sardinha, o Garoto (1915 – 1955), essa violonista foi uma das primeiras a transcrever para violão as músicas Alma Brasileira e Saudade, de Radames Ignátalli (1906 – 1988).
O próprio impasse cada vez menor que ainda presenciamos entre a música popular e a música de concerto deixará de existir tão logo nas universidades os mestres sambistas e chorões das rodas forem nomeados professores, e os antigos professores retornarem às cadeiras dos alunos: quantos Baden Powell, Raphael Rabello, Maurício Carrilho, não teríamos se as salas de aulas fossem “situações de roda de choro”, como era um dos métodos prediletos empregado pelo mestre Meira?
Hoje, em São Paulo, uma das mais destacadas violonistas de concerto no cenário internacional de violão, Gabriele Leite, é uma jovem negra. Além da sua curiosidade e do acolhimento dos pais, foi em um programa de promoção de cultura na cidade de
São Paulo, que oferece a diversos jovens gratuitamente a possibilidade de aprender a tocar violão, que a musicista deu seus primeiros passos rumo ao seu nível atual; no Rio de Janeiro, cresce cada vez mais o prestígio de uma violonista e professora negra, Samara Líbano, que toca as 7 cordas e faz em ascensão conhecermos o seu nome.
O exemplo dessas trajetórias isoladas mostra uma série de coincidências que tem significados muito anteriores às suas próprias caminhadas: a musicalidade latente, o acolhimento da inspiração, a obstinação mesmo com o improvável reconhecimento.
Diante de tal perseverança e talento, fazemos muito bem em conhecê-las e prestigiá-las, seja acompanhando e divulgando através das redes ou possibilitando outras estruturas em que esses e novos talentos possam existir.
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Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Diego Jandira
É músico violonista, colunista, cientista social graduado pela Unifesp e pesquisador musical no projeto Violão Negro Brasileiro.
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