Por uma improvável coincidência de fatores, que seria difícil descrever aqui, na noite do último dia 20 de outubro eu me encontrava na aconchegante casa da escritora Paulina Chiziane, na província interiorana da Zambézia, região central de Moçambique. Estávamos sentados em cadeiras de pau preto no quintal de terra batida, à volta da fogueira, seu lugar preferido, poucos amigos, à espera do jantar, quando o telefone tocou, causando certo desconforto, seja pelo horário avançado, seja porque Paulina prefere tratar dos seus assuntos pessoalmente, nunca à distância. O toque do celular era mais estridente que o normal, como o cri-cri-cri seco de grilo macho, quando roça pernas e asas umas sobre as outras para atrair a fêmea, e isso chamou a atenção de todos e desfez o ritmo alegre das conversas e o chiado em x da panela de pressão ao fundo. Estranho como nesses momentos fundamentais uma corrente elétrica estática atravessa todo o ambiente e os sons se silenciam, por um átimo, breve déjà-vu que se antecipa à realidade em milésimos de segundo, prenunciando coisas extraordinárias por acontecer.
Alô, mamã, foi assim que desde o outro lado da linha sua amiga de longa data, dos tempos de militância política, a crítica literária Lídia Última, testava o canal telefônico, ansiosa para avisar em primeira mão que o júri do prêmio Camões acabara de deliberar e atribuir à Paulina essa que é a maior distinção dada a escritores da língua portuguesa. E por distinção entenda-se dinheiro, são 100 mil euros que vão para o bolso da moçambicana, no esforço neocolonialista de cooptação que, quando bem aceito, como de fato foi, traz importante alívio financeiro às vésperas das festas de fim de ano. Nem lembrava que existisse o tal prêmio português, Paulina confidenciou num rápido cochicho, de si para si mesma, com a orelha ainda colada ao aparelho, embora a chamada já tivesse terminado.
Mal passara a euforia inicial, quando pulamos e gritamos sem saber ao certo o motivo, eu pelo menos não sabia, pois as informações chegavam na densa noite em código morse de pirilampo, a vizinha curiosa, dona Ermelinda Cadeira, elevou a cara rechonchuda acima do nível do muro que separa as casas e, gesticulando com a palma da mão em vai-e-vem à frente no nariz, fez-nos saber que o guisado de legumes cheirava a queimado e que com sorte daria para salvar a panela. Já não importava, com tantas ligações e mensagens de felicitações que começavam a chegar de amigos, jornalistas, autoridades, e até do feiticeiro da vila, ninguém teria tempo para comer tão cedo, e ademais a ocasião pedia cerveja, não repasto.
E de fato bebemos muito, e nessa noite a Paulina falou muito, ela é assim, dessas pessoas que bebem, ficam tristes e falam, acho até que ela precisava falar, queria falar, tinha muita coisa para falar. Falou da sua história, que é a história de Moçambique e suas lutas, falou da infância pobre no campo, em Manjacaze, no seio de uma família protestante, falou inclusive mal dos evangélicos, que seguem invadindo a África, falou da mudança aos sete anos de idade para os subúrbios de Maputo, chamada então de Lourenço Marques pelos colonizadores, falou de suas primeiras letras, riscadas com o dedo sobre a terra, porque não tinha caderno, e de como ali, na escola da missão católica, por imposição autoritária do sistema, em seu esforço infecundo de erradicação das raízes africanas, ela foi obrigada a aprender a língua portuguesa, sem jamais imaginar que anos mais tarde seria essa mesma língua a dar voz a sua literatura e, por meio dela, a seu povo. A minha voz narrativa, mesmo quando escrevo em primeira pessoa, é sempre uma voz coletiva, disse, relembrando com certa melancolia o distante ano de 1990, quando escreveu a sua Balada de Amor ao Vento, tornando-se a primeira escritora negra a publicar um romance em Moçambique, ela que agora se tornava a primeira mulher africana a ganhar o prêmio Camões.
Uma nota triste pairava sobre as memórias que essa mulher fortíssima vasculhava, enquanto percorria com o olhar um pouco vago o contorno azul e alaranjado das línguas de fogo diante de si. Sabe, não sou romancista, como dizem, o que faço é apenas contar as coisas que ouvia de minha avó. Perguntei então se sentia saudades dela e dos que já partiram, mas não obtive resposta, ou melhor, no breve silêncio entendi que sim, que sua escrevedura é fruto exatamente dessas ausências primordiais, entendi que não é à toa que personagens femininas ocupam o cerne de seu trabalho e encarnam a sua alma: são invariavelmente batalhadoras e não respeitam fronteiras físicas ou cronológicas em seu esforço libertador, são Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, respectivamente avó, filha e netas, três gerações que reproduzem o alegre canto da perdiz e expõem os conflitos da mulher universal.
Paulina derrama-se em segredos, que me custam a crer, conta que o mundo foi criado naquela mesma zona, nos montes Namuli, antes que houvesse senhores e escravos. Escravizados, Paulina, hoje se diz escravizados, corrigi-a prontamente. Ela olhou-me com a cabeça torta em interrogação e prosseguiu, reiterando que o mundo foi criado nos montes Namuli, antes que houvesse senhores e escravos, e fronteiras. Interrompi-a novamente, perguntei se a Zambézia tinha fronteiras, e ela disse que não, porque aqui é o centro do cosmos, porque todo o planeta Terra se chama Zambézia, porque os montes Namuli são o ventre do mundo, o umbigo do céu.
A africana disse também que no princípio havia um homem e uma mulher, que se defrontavam no espaço circular de uma palhota de pau-a-pique, um casal que fez parar o movimento dos astros e todas as máquinas do tempo, colocando em desordem todas as coisas, para voltar a ordená-las em seguida. O primeiro homem e a primeira mulher deixaram marcas de uma luta violenta por todos os lados, pratos e a cama de bambu quebrados, os cobertores e lençóis espalhados, gritos, uivos, suspiros, o big bang foi o orgasmo do criador, é isso o amor, corpos em esgrima na batalha original, sem vencedor nem vencido. Na guerra da existência é o abraço e o beijo que selam a trégua e prometem um novo combate.
Se o mundo nasceu da simbiose entre guerra e amor que você narra, Paulina, e temos guerra por todo lado, onde está então o amor, ou melhor, o que é o amor para a mulher negra? Ela me devolve a pergunta com outra, retórica: onde está o amor numa terra onde as mulheres se casam por encomenda e na adolescência? Diz-me o que é o amor para a mulher que foi violada a caminho da fonte por um soldado, um marinheiro ou um condenado? Entendi que as histórias de paixão são somente para quem pode sonhar, que a mulher negra não brinca com bonecas, mas com bebês de verdade, a partir dos doze anos, que a conversa de amor e virgindade é para as mulheres brancas e não para as pretas, que o amor é perigoso, pois é como as marés, vai e vem, esconde-se e aparece, colocando em risco a solidez e segurança do lar matrimonial, onde não há paixão. É por isso que para nós, negras e pobres, o amor e a paixão deviam ser proibidos, porque só trazem a guerra, concluiu, talvez pensando na culpa que Eva carrega até hoje.
Seguiu-se novo silêncio estático, rompido com o cantarolar quase inaudível de uma doce canção, um murmúrio lento e espaçado que Paulina trazia da infância:
Ah, quão longos são os caminhos do mar
Quão árida é a travessia do deserto
Quão distante é o além dos nossos antepassados
Quão bela é a terra que nos viu nascer
Quão confortável é o útero de uma mãe
Paulina, suas histórias são lindas, você descreve o mundo e suas engrenagens de forma precisa, o homem e suas primeiras e segundas intenções também, mas raramente fala de si, ainda não sei quem é você. Ela sorri e responde, depois de se fazer a mesma pergunta. Quem sou eu? Eu sou uma estátua de barro no meio da chuva. Eu odeio as roupas que me limitam o voo e as paredes que não me deixam escutar a música do vento. Eu sou aquela que desafia a vida e a morte em busca de seu tesouro. Eu sei que o choro de uma mulher tem a força de uma nascente. Eu sei com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo e com quantas dores se faz uma vida, ou com quantos espinhos se faz uma ferida. Mas eu não tenho nome nem sombra nem existência. Eu sou uma borboleta incolor, disforme. Das palavras conheço as injúrias, e dos gestos, as agressões. Tenho o coração quebrado. O silêncio e a solidão me habitam. Eu sou aquela que ninguém vê…
Paulina, eu te vejo, é por isso que vim a sua casa, mas te vejo por pouco tempo, que vai alta a noite zambeziana e, no aconchego quente da fogueira, um sono gostoso toma conta do meu corpo.
Durmo e acordo dali a poucas horas, quando os primeiros raios de sol invadem meus globos oculares e chegam às trevas do meu crânio mestiço. Apesar da dor de cabeça, se da bebedeira ou da noite mal dormida, não sei, ainda tinha vivas as histórias da Paulina sobre a origem e o destino de tudo e o que há entre um e outro, as coisas da vida, a beleza e fealdade que a experiência humana nos proporciona, histórias todas igualmente verdadeiras e falsas, como a literatura é, a imaginação fincada na realidade, e dou-me conta de que preciso voltar a Maputo em breve. Antes de partir, porém, noto que a Paulina já se recolheu, a festa acabou, foi descansar para o longo dia de entrevistas que terá pela frente.
No carro, a caminho do aeroporto, vejo pela janela que a máquina do mundo de Drummond voltou a funcionar, a pleno vapor, movimentando quatro gaivotas pretas que transbordam do céu azul para pousar nas folhas de uma palmeira verdíssima, que corta ereta a linha do horizonte, tendo os montes Namuli ao fundo. No plano mais próximo, somente algumas palhotas e um descampado cercado de mato, onde crianças pobres jogam futebol e uma bola de meias corre a ossudos pontapés. Os miúdos brincam felizes, todos contra todos, e a poeira parda sobe em redemoinho, preparando o cenário para a criação de novas histórias.
Eu observo tudo isso atento, de longe, em trânsito, cheio de felicidade elíptica, tentando ainda entender com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Gustavo Buttes
É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.
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