Sobre a eclosão da Primeira Guerra Mundial, Franz Kafka escreveu em seu diário: “Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde fui nadar”. É uma frase que sempre me causou assombro e, com estranheza, vivi estes últimos dias assistindo o conflito militar que eclodiu no leste europeu crescer de forma vertiginosa e descolada do cotidiano protocolar. Ao mesmo tempo em que a vida se impõe e precisamos continuar cumprindo as tarefas mais básicas e vitais, a notícia de uma guerra que pode ganhar proporções inimagináveis causa rupturas mais do que incômodas. Se a declaração de Kafka pode sugerir uma espécie de alheamento, ela se configura, antes de mais nada, como uma aposta radical na vida.
As notícias chegam pela televisão. Atordoada com a transmissão ao vivo da catástrofe, na tentativa de contornar o horror busco escrever frente ao absurdo e ler criticamente as imagens lançadas diária e ininterruptamente: a vida em jogo em ritmo surdo e espesso, um limbo em que é possível tocar a escuridão na busca de um amanhecer tênue e difícil.
Além do esfacelamento simbólico, na guerra se quebram todas as balizas daquilo que chamamos de humanidade. Com impressionante atualidade, podemos encontrar alguns pontos de ancoragem nas reflexões de Sigmund Freud sobre as motivações da guerra, sobretudo nos textos “Considerações atuais sobre a guerra e a morte” e “Por que a guerra?” – este uma troca de cartas com Albert Einstein, livro publicado em Paris, em 1933, em alemão e em francês.
Para as reflexões expostas por Freud devemos considerar também as obras “O futuro de uma ilusão” e “O mal estar na cultura”, em que encontramos a ideia fundamental da contradição trazida pelo progresso e pela civilização, em troca da coerção exercida sobre os transbordamentos pulsionais dos homens e as frustrações vividas pela mesma razão. Freud denunciou as falsas ilusões e as desilusões não menos falsas que o fenômeno da guerra pode alimentar e, por outro lado, se recusou a acreditar em esperanças pacifistas superficiais, assinalando que, diante da violência estrutural das relações, devemos trabalhar para uma espécie de aliança de paz que estabilizaria as diferenças que conduzem ao afrontamento, deixando claro que o dissenso faz parte da construção civilizatória e, mesmo para alcançar a paz eterna, não podemos exterminar definitivamente todas as formas de confronto.
Vivemos os últimos anos dentro de uma ambiguidade, entre a utopia e a distopia: um governo catastrófico, os horrores de uma pandemia, uma guerra que se anuncia como brutal e a tentativa obstinada de manter no horizonte alguma esperança.
Michel Foucault lembra que a guerra relança incessantemente o jogo da dominação e coloca em cena uma violência meticulosamente repetida. Devemos nos mover, mesmo diante da inextricável articulação das pulsões que estruturam um conflito. No estado de guerra, a quebra dos imperativos da lei resulta na banalização da violência dirigida ao outro, o que afeta diretamente os laços sociais, corroendo qualquer possibilidade de partilha e comunidade.
Atingidos no narcisismo e com identidade e imagem despedaçadas, nos sentimos ameaçados e arremessados de volta ao desamparo. Impensável mensurar o que sente a população diretamente envolvida na guerra: o trauma confronta o sujeito com o real, com o que não tem sutura, com o irrecuperável e inominável. Cabe aqui refletir sobre os processos inconscientes que subjazem às ações humanas, sobretudo aquelas que violam o pacto civilizatório em sua face mais destrutiva, agressiva e cruel. No sentido de honrar a aposta de Freud – que, em toda a sua obra, ratificou a ética, o direito inalienável à vida frente às manifestações da pulsão de morte – devemos trabalhar para dar destino ético ao indomável no homem, que recuse o que é mediado por guerras, terrorismos e pelo exercício da crueldade que se vale de narrativas perversas em nome de patriotismo ou de uma paz paradoxalmente buscada por meio da violência.
A psicanálise e a arte são apostas éticas que salvam da degradação, são discursos que pensam criticamente a imagem. Hoje vemos pela televisão imagens que até então eram vistas apenas em filmes de guerra – tão impressionantes e brutais que parecem ser mesmo de filmes. Neste contexto crítico, encontramos Harun Farocki, diretor de cinema cuja trajetória é marcada pelo sentimento de desterritorialização e pela possibilidade de um trabalho que condensa vida e obra.
Farocki nasceu em 1944 em Neutitschein, na atual República Tcheca, onde a família morou temporariamente, em fuga de Berlim – cidade que esteve sob bombardeio, na Segunda Guerra Mundial. Em 1947 a família foi para a Índia – seu pai era indiano e a mãe alemã – e, após outras mudanças, se instalou na Indonésia. O retorno à Alemanha se deu em 1953, onde Farocki seguiu os estudos. O sentimento de desenraizamento é central em seu trabalho, assim como o embate produção-destruição: paradoxalmente, o progresso deixa atrás de si um rastro de destruição. Farocki não se cansou de denunciar a guerra e a contraditória natureza do progresso técnico. Impossível não lembrar aqui da elaboração de Walter Benjamin: “Essa tempestade o leva irresistivelmente para o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o monte de detritos a seus pés chega aos céus. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”. O mundo moderno vive à beira do abismo, sob a ameaça de vírus letais, armas de destruição em massa, em estado constante de guerra. O gesto operado por Farocki – a possibilidade de aposta numa leitura mais aguda das imagens – dialoga com o espírito disruptivo de Freud.
Que a arte e a psicanálise possam lidar com os destroços e, com eles, fazer a aposta ética de manter viva outra maneira de se contar. Numa volta completa no olhar e na forma de recepção das imagens podemos a elas conferir outra espessura, uma brecha para outras histórias menos destrutivas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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