Escrever quinzenalmente tem seus problemas. As coisas andam rápido demais no país, então temos que nos ater ao que é estável, constante, certo.
Bolsonaro, por exemplo: é uma alma de criança atrasada da quinta série presa no corpo mal-ajambrado de um sexagenário decadente – também atrasado. Todos sabemos o que esperar dele, é uma ilha de confiabilidade num mundo em constante mutação. Ele NUNCA vai nos surpreender, sempre dirá a pior coisa no pior momento, e tomará a atitude mais imbecil.
Até alguns anos não era assim. O mundo era razoavelmente previsível. Mas o 11/9 mudou tudo. Mudou, principalmente, para iraquianos, afegãos e vizinhos, que tiveram suas vidas destruídas na bolsonariana vingança americana. Viajar de avião, por exemplo: se tornou uma enorme chatice. Antes você entrava portando uma AK47 que nada aconteceria, a aeromoça até o ajudaria a guardar no bagageiro; depois disso sequer um garfo de plástico um pouco mais durinho. A perda de pequenos direitos individuais só se adensou de lá para cá, também, facilitada pelo desenvolvimento dos equipamentos de vigilância, também conhecidos como câmeras de celular & congêneres. A privacidade acabou.
Para mim, especificamente, houve uma perda sentimental. Sempre gostei de Nova York, e sempre que ia a primeira coisa que fazia era ir ao WTC, descer ao subsolo, comprar um delicioso hambúrguer, entocá-lo no bolso e subir ao observatório, onde compraria uma coca e o comeria, observando a cidade lá embaixo.
Outra consequência pessoal foi ter ganho, em dezembro daquele ano, duas passagens Rio x NY num concurso literário do saudoso Jornal do Brasil. Estava perto de me casar, e uma lua de mel grátis viria a calhar. Mas minha futura esposa – que, seguindo a ordem natural das minhas coisas, agora é ex-esposa – não tinha visto válido. E, claro, foi negado, um visto naquele período era sempre difícil, e eu já tinha o meu. Tentei de todas as formas um recurso, e nada. Meu pai conhecia o então presidente da Câmara Sergio Cabral – haviam trabalhado juntos (aqui é necessário um parêntese: na campanha para o governo, Cabral encontrou meu pai na rua – também Sergio – e disse:
-Xará, conto com teu voto!
Meu pai, sempre polido e refinado:
-Com o MEU, não!)
e a chefe do cerimonial da Câmara se propôs a ajudar. Ela conhecia o cônsul, mas não conseguia falar com ele, o 11/9 ainda estava muito presente. Depois de uma semana tentando – e a passagem tinha uma validade curta – ela me ligou.
-Meu filho, lamento, mas desisto. Não consigo falar com o cônsul, o consulado está uma bagunça, não tem mais nada que eu possa fazer, me desculpe, sim?
Bem, ela estava tão triste que resolvi mandar flores, para consolá-la. Encomendei e ordenei que entregassem na manhã seguinte. E ela me ligou:
-Meu filho, muito obrigado pelas flores. Foi a primeira vez que recebi uma gentileza assim, e você fez justo quando não consegui te ajudar. Fiquei tocada e liguei de novo, e adivinhe: o cônsul, em pessoa, atendeu. Marcou uma entrevista com vocês.
Graças a isso, conseguimos e fizemos uma bela viagem. Fui prestar meus respeitos no Ground Zero e, chocado, observei que as ruas no entorno ainda estavam esburacadas pelos destroços, e as vidraças todas com uma grossa camada de poeira. Era abril, 7 meses depois da tragédia, e a poeira se mantinha firme, espessa. De repente, um avião passou mais baixo. Todos se entreolharam assustados… Levei uma medalhinha que tinha feito no edifício: você dava uma moeda de 1 cent e passavam numa prensa, transformando-a num souvenir com a imagem das torres. Joguei-a no enorme buraco e fui embora.
Mas a cidade estava mais gentil. Pessoas faziam carinho em crianças no metrô, sorriam quando se cruzavam, de alguma forma o sofrimento abrandou um pouco as almas. Como idiota que sou, esta é minha esperança para depois que esse desastre for definitivamente embora daqui. Alguém pode dizer que a comparação é descabida, talvez de mau gosto. Well… Nos ataques de 2001 morreram um pouco mais de 3 mil pessoas. Se somarmos TODOS os que morreram nas guerras subsequentes, nos diversos fronts, não chegam aos 600 mil mortos na pandemia aqui no Brasil – dos quais, calcula-se, uns 400 e tantos mil por responsabilidade direta da incúria do “presidente”. E mesmo esse número ainda é superior ao de TODAS as vítimas diretas e indiretas do 11/9. Centenas de milhares de irmãos nossos morreram, todos com nome e sobrenome. E 20% da população ainda apoia isso.
Se você conhece alguém assim, se afaste. Se a pessoa se arrepender, aceite-a de volta, mas fique com um pé atrás. Quem gostava dessa criatura claramente tinha algum problema, mental ou moral, mas quem ainda gosta é perigoso, capaz de qualquer coisa.
Essa é, teoricamente, uma coluna de humor. Não aceitei ser remunerado por este texto. Trata-se de um desabafo, quero dar estas duas laudas de trabalho voluntário para tentar extirpar esse câncer que colocaram em Brasília antes que a metástase – que já se iniciou – avance mais.
Semana que vem eu volto.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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