O Brasil vive uma sufocante quadra conjuntural. Estrangulado enquanto nação, vê morrer diariamente uma média de 1.100 pessoas por dia, já chegando a um total próximo de 120 mil mortos, até então, devido à pandemia da Covid-19. A população das periferias, das favelas e dos quilombos, composta por negros que formam a maioria do Brasil e as comunidades indígenas estão sendo brutalmente afetadas pelo vírus. Isso provoca equações como a que diz que a cada cinco mortes, quatro são de pessoas negras – uma tradução matemática das heranças escravocratas que dão estrutura para o funcionamento desse país.
O desemprego chegou a 13,3%, atingindo 12,8 milhões de brasileiros e brasileiras. As pessoas voltaram a ter a fome batendo nas suas portas, como não se via há muito. O fascismo tenta, a pleno vapor, fazer uma até agora bem-sucedida repactuação político-econômica com o establishment político e a burguesia nacional, a fim de reconstruí-la e manter-se no poder, além de aliançar-se com o velho modelo populista – sem abandonar o discurso ideológico.
E, para piorar, devemos esperar que no pós-crise venha o maior ajuste de contas que já pudemos ver, fazendo nossa economia chegar a patamares gregos pós-2008. Ou seja: o horizonte que está em consolidação é o de um Brasil quebrado, colapsado economicamente e com a miséria aprofundada de forma exponencial. Fome e gente na rua, enquanto militares desenvolvimentistas e liberais disputam o protagonismo da política dentro do bolsonarismo.
As forças de resistência e a falta de alternativas
As forças de resistência, se é que esse adjetivo cabe a elas, concentradas numa esquerda ainda abatida moral e psicologicamente pelos efeitos da Operação Lava Jato, até agora não apontam soluções para a nação brasileira – embora se ocupem de planos de reconstrução debatidos nas cúpulas da burocracia e pouco com quem de fato sofre as consequências da política em vigor no país. Os projetos que tentam construir o Brasil, sempre embranquecidos, envelhecidos e fincados no mais do mesmo, sem renovação dos quadros, pouco ou nada dialogam com o caldo político que emerge das periferias, marcadamente da população negra.
Trata-se de um erro complexo, pois acontece em dois atos, ambos à esquerda.
O primeiro é marcado pela clara incapacidade deste campo político de construir, mesmo que sob bases e pilares envelhecidos de sempre – pautados exclusivamente em elementos de classe e no debate desatualizado sobre trabalho – uma alternativa de poder, de desenvolvimento nacional e, neste momento principalmente, de reconstrução da base social, política e econômica que deu sustentação aos governos progressistas até o início da dissolução destas alianças em 2014 e o derretimento final em 2016.
Depois, parece ainda mais improvável avançar no apontamento de que o mundo do trabalho mudou e de que a subalternização dos pobres (no Brasil, sinônimo de negros e negras) que forçadamente empreendem – ou que estão desalentados (mais de 5 milhões de brasileiros) – estrutura-se como a nova forma de dominação do capital sobre o povo.
A uberização e a incapacidade das elites
Daí surge fenômenos como uberização, aprofundamento do subemprego e emerge também, como efeito colateral positivo, categorias que sintetizam o novo formato da luta de classes por aqui, como os entregadores de aplicativos, e lideranças como o Paulo Galo Lima.
Também submergem daí tecnologias sociais periféricas, construídas como solução para problemas que deveriam ser resolvidos pelo Estado e por pessoas que precisam ser considerados parte de uma intelectualidade nacional que reconstruirá o Brasil.
Parece não ser entendido pelas forças que deveriam ser de resistência o fato de que a relação patrão-empregado continua sendo responsável por parte das desigualdades, por meio da mais-valia, mas que torna-se cada vez maiores e até hegemônicas novas formas de construção de desigualdades, devido ao giro do Brasil na direção do rentismo e do capital internacional, consolidado com o golpe de 2016; da desarticulação da indústria; das empreiteiras e das empresas campeãs nacionais; e da cratera que tragou o setor produtivo e fez os empregos formais serem dizimados.
A partir dali, a elite que controla o setor produtivo nacional, movida pelo ódio de classe e de raça, cumprindo papel de inimiga da soberania nacional, provou sua incapacidade de construir um Brasil que fosse mais do que apenas um paraíso hedonista, um grande parque de diversões (de preferência, em decadência) para suas aventuras. Provou sua incapacidade de propor um projeto de Brasil desenvolvido, com soluções para setores como a indústria, o comércio, a saúde, a segurança pública.
Negam, em looping constante, que são brasileiros. E burramente, acham que é melhor que não surja um novo Brasil e que sejamos sempre colônia e reféns da síndrome de vira-lata que os educou – em vez de nos desenvolvermos enquanto nação, o que seria importante inclusive para o capitalismo. Disso tudo, porém, nós também ainda não tivemos êxito de apontar os caminhos de saída desse buraco.
Um espaço para se pensar uma nação negra e antirracista
É por isso que esse espaço de escrita mensal, direcionado ao tema racial e nacional, nasce no IREE neste mês de setembro. Vamos unir os acúmulos de pensamento deste Instituto e do Coletivo de Entidades Negras (CEN), instituição antirracista nacional, para indicar o que achamos ser o Brasil não somente do pós-crise e do pós-pandemia, mas o Brasil enquanto nação (negra e antirracista). Apresentaremos diagnóstico e soluções como subsídio para os demais setores do IREE, a fim de que todas as ações do Instituto sejam alinhadas à agenda antirracista e, assim, ela tenha a centralidade que lhe cabe no caso brasileiro.
Desta forma, vacinaremos o país contra a doença do racismo, varrendo de vez os farelos da escravidão e do pós-abolição que ainda estão debaixo do tapete nacional.
Trata-se de uma equação simples, para voltar à matemática: se é o racismo que estrutura a miséria no país (falta de emprego, falta de moradia, encarceramento, morte de jovens, falta de acesso à terra, falta de saneamento, feminicídio etc), e também se são os negros que sofrem com o aviltamento de direitos à saúde, à educação, à segurança pública e outros, somente o combate ao racismo pode nos ajudar a mudar essa realidade de forma estrutural.
Mais que isso, só a construção de um projeto de nação é capaz de consolidar esse horizonte como um novo paradigma nacional, construindo acesso à educação, apoio à intelectualidade negra, estruturação de redes de pressão e advocacy sobre o Poder Legislativo e outros atores políticos, e também os essenciais atores econômicos, para avançar em pautas antirracistas, fazendo com que esse debate deixe de ser tratado como lateral e ou secundário para o desenvolvimento do Brasil. Dialogaremos com as empresas, com os setores corporativos, para propor a inclusão desse debate nos seus planos de governança.
Por mais que seja presunçoso, acredito que assim derrotaremos o que ainda resiste, nas franjas do Estado e do setores privados da sociedade brasileira, de um sistema de subjugação de africanos que durou 388 anos e que foi extinto (só de forma oficial) há 132.
Em tempo, devo dizer que essa é uma proposta que inclui conversas com todos que pensem no Brasil, de forma a convencer a eles e elas de que, ao atacar essa chaga, haverá lucros políticos, sociais e econômicos para todos – principalmente para nós enquanto brasileiros, para termos uma nação desenvolvida.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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