Um amanhã ainda por ser escrito – IREE

Colunistas

Um amanhã ainda por ser escrito

Bianca Coutinho Dias

Bianca Coutinho Dias
Psicanalista e crítica de arte



É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com seu

tempo e nem está adequado às suas pretensões, mas exatamente através desse

deslocamento, que ele é capaz, mais que os outros, de perceber e apreender o seu

tempo.

Giorgio Agamben

Com imensa alegria acompanhei o festival internacional de documentários “É tudo verdade” na sua 28ª edição, em salas de cinema cheias e vibrantes, espaços vivos em que a arte pode friccionar certezas e dar lugar a invenções sempre singulares, o que ocorreu, de forma especial, com os filmes “Amanhã” de Marcos Pimentel e “Santino” de Cao Guimarães.

Marcos Pimentel dirigiu vários filmes – entre eles “Fé e fúria”, do qual já pude escrever – e, com “Amanhã”, mais uma vez apresenta uma leitura aguda do país. Vinte anos depois, o diretor retoma um filme iniciado em 2002, em Belo Horizonte, onde a barragem Santa Lúcia, uma linha de fricção e contágio, separa um conjunto de favelas de um bairro de classe média alta. Três crianças, moradores de lados opostos da barragem, lugares próximos e ao mesmo tempo distantes, são filmadas no frescor e espontaneidade da infância, experimentando e conhecendo universos sociais completamente diferentes. Com sensibilidade silenciosa, o filme atravessa a vida e coloca frente a frente não só os últimos 20 anos de três jovens, mas do país: entre 2002 e 2022, o Brasil passou por intensas transformações, com consequências diretas na vida de crianças que, agora adultos, olham abismadas para uma infância cristalizada nos afetos mais genuínos.

“Amanhã” é um filme sobre os encontros e desencontros da sociedade brasileira contemporânea e os abismos que o país encarna: um conjunto de favelas de um lado e, do outro, um bairro de classe média alta. Um dos garotos, agora homem, se recusa a participar de um reencontro com os outros dois. O acontecimento abala não apenas estes, moradores da favela, como também interfere no andamento da filmagem: Zé Tomás, de classe média alta, não quer vincular a sua figura com a de Júlia e Cristian que, por seu lado, enfrentam seus próprios monstros, com idas e vindas, no desamparo subjetivo e social. O filme discute, de forma profunda, questões socioeconômicas e políticas do país, com camadas e filigranas absolutamente tocantes. Marcos Pimentel quer acertar as contas com seu tempo, tomar posição frente ao presente que o interroga e o faz com um filme que revisita as duas últimas décadas do país, a partir da relação complexa e densa de crianças que nascem, crescem e vivenciam lados distintos de um abismo social que deixa marcas indeléveis. Ninguém escapa de viver nessa fratura que impede o tempo de compor-se. O filme é uma resposta aguda sobre um amanhã que ainda é somente esboço.

Cao Guimarães estabelece uma singular relação com o tempo – estando nele e, simultaneamente, dele tomando distância. Descoincidindo com sua época, o diretor busca no cerrado mineiro um sujeito que anuncia outro tempo e outro território retórico, uma cosmologia que conecta o mundo dos vivos e dos mortos. Diante do universo que se esboça em “Santino”, nos encontramos frente a uma série de enunciações plenas de mistério.

O cerrado de Minas Gerais encarna o precário e o precioso da vida, a fauna e a flora, e os segredos das veredas nos enviam para um espaço de mitologia e cosmologia próprias, passando pela planta, que é encantada e desaparece, ao encontro da natureza com a tecnologia, que coloca um contraponto ao cotidiano do veredeiro Santino e sua família na bacia do Rio São Francisco. Tudo parece pertencer a outro tempo e pulsação. Em um universo próprio de Guimarães Rosa, a paisagem dá um tom subjetivo e místico: do encontro das veredas – formações vegetais que abastecem de água a fauna e o solo do cerrado brasileiro – com a narrativa de Santino, forja-se um mundo que interliga a natureza ao mundo espiritual. Nessa confabulação – cosmologia e invenção – encontramos ainda um diálogo atento ao aspecto ecológico: Santino é uma espécie de guardião de um bioma ameaçado e ensina, em sua solidão plena de vida, que há muito de insondável em tudo.

Nas palavras do diretor: “Dentro de minha obra, eu diria que “Santino” é um filme que segue o mesmo estilo de “A alma do osso” e “Andarilho”. São filmes de personagem em que a força maior emana do simples acompanhamento do cotidiano de personagens expressivos, que fascinam por trazer algo novo em suas formas de estar no mundo. Assim, acompanhamos Santino se equilibrando, na realidade do cerrado, entre um ativismo de defesa da natureza e conexões com um mundo místico que o orienta e lhe dá forças para continuar. É um filme simples, observacional, que não busca se fechar em conclusão alguma, deixando que cada espectador sinta a luta do ser humano com a natureza, com seus pares, com o desconhecido e com o mistério”.

Os filmes de Cao Guimarães tocam o que me parece ser a experiência que funda a existência. Tudo em sua obra revela uma noção profunda do humano que nasce da consciência do abismo da linguagem, da ferida da língua, do assombro delicado. Em seus olhos luminosos, Santino é puro enigma e tremulação, uma mistura do Brasil arcaico e do desejo de modernidade, ambiguidade e densidade que comove e muito ensina de nossa formação.

Os filmes de Cao Guimarães e Marcos Pimentel sabem vibrar no silêncio e na imantação de outros mundos. Se “Santino” abriga o incomunicável de um real que só podemos tocar pela poesia, “Amanhã” nos dilacera ao interpelar o tempo e nele escreve a descontinuidade. Cao Guimarães coloca em relação visível e invisível, palavra e ruído. Marcos Pimentel toma toda forma de experiência como política: a presença do passado no presente, que o ultrapassa e o reinvindica.

Santino reinventa a palavra e recria um território geográfico e retórico, fazendo de suas veredas um abrigo de memória. Amanhã está ainda por ser escrito. Ambos, contemporâneos do modo que Giorgio Agamben afirma: “Contemporâneo é aquele que mantém o olhar fixo no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro – o escuro que não se separa da luz – a íntima obscuridade”.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Bianca Coutinho Dias

É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).

Leia também