"Temos que sair do DOI-CODI", ou Cidadanias Assimétricas – IREE

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“Temos que sair do DOI-CODI”, ou Cidadanias Assimétricas

Gustavo Buttes

Gustavo Buttes
Diplomata



Nos idos de 1854, o abolicionista estadunidense Samuel Moore publicou a obra Biography of Mahommah G. Baquaqua – a native of Zoogoo, in the interior of Africa, escrita a partir do relato feito em primeira pessoa pelo próprio africano. A de Baquaqua é apenas uma entre milhões de histórias de conterrâneos seus, vítimas de um sistema internacional perverso de tráfico humano e trabalho forçado, que vigora em alguma medida até hoje e possui ramificações no território brasileiro. Por circunstâncias afortunadas – embora absolutamente excepcionais -, o protagonista em questão alcançou sua sonhada liberdade ao pisar em Nova Iorque, em 1847, depois de fugir do Brasil em um navio que transportava café para as terras norte-americanas:

“A primeira palavra do inglês que os meus dois companheiros, e eu mesmo, aprendemos foi F-R-E-E (LIVRE); quem no-la ensinou foi um inglês a bordo, e ó quantas vezes eu a repeti, muitas e muitas vezes.”

Embora narre com riqueza de detalhes as formas de organização social e costumes de povos tradicionais da África Ocidental, o tema principal da obra de Moore é a experiência aterrorizante vivida por Baquaqua, em suas diversas nuances. Uma delas diz respeito às condições de vida dentro do navio negreiro, que, ademais de sua esperada funcionalidade mercantil, serviu de instrumento de perversão contra os escravizados, durante a travessia do Atlântico, desde a costa da Guiné até Pernambuco:

“Fomos lançados no porão do navio em estado de nudez, os homens espremidos de um lado e as mulheres do outro; o porão era tão baixo que não conseguíamos ficar de pé, mas éramos obrigados a nos agachar sobre o piso ou a nos sentarmos; dia e noite eram a mesma coisa para nós, o sono nos era negado pela posição de confinamento dos nossos corpos, ficamos desesperados com o sofrimento e fadiga.

(…)

Quando qualquer um de nós se rebelava, a sua carne era cortada com uma faca, e pimenta e vinagre eram esfregados, a fim de nos tornar dóceis.”

Para não fugir do escopo pretendido, o de sensibilizar o leitor para a crueldade da escravidão, o relato tem forte viés intimista e furta-se a um esforço mais apurado de contextualização histórica. Não faz menção, por exemplo, às relações carnais mantidas entre o Brasil e o então poderoso reino guerreiro e escravagista de Daomé, que enviou, em 1750, a primeira de muitas missões diplomáticas a terras brasileiras para tratar de questões relacionadas ao tráfico negreiro. Daomé foi também o primeiro Estado a reconhecer oficialmente a independência do Brasil, em 1822, fato convenientemente omitido pela historiografia oficial.

A luta de resistência de Baquaqua, que se iniciou ainda nas florestas tropicais africanas, atravessou inúmeras fronteiras físicas, passando por Brasil, Estados Unidos, Haiti e Inglaterra, antes que o africano pudesse retornar a sua terra natal, na condição de líder abolicionista e missionário protestante. Ultrapassou também algumas barreiras cronológicas. Seu testemunho impulsionaria, muitos anos depois, uma série de movimentos em prol da igualdade de direitos políticos e civis nos Estados Unidos, de que o exemplo mais recente é o Black Lives Matter, pela melhoria das condições de vida da população negra marginalizada e contra a repressão do Estado policialesco.

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Em 1972, portanto mais de um século após a chegada de Baquaqua às costas brasileiras, o então ministro das Relações Exteriores, embaixador Mário Gibson Barboza, realizou seu famoso “périplo africano”, visitando em um mês nove países da costa atlântica (Costa do Marfim, Gana, Togo, Benim, Zaire – atual RDC -, Camarões, Nigéria, Senegal e Gabão), localizados aproximadamente na mesma região onde outrora, antes da colonização europeia, se localizara o reino de Daomé.

Os detalhes da atuação diplomática do pernambucano Gibson Barboza estão registrados na elegante – e um tanto folclórica – obra autobiográfica Na diplomacia, o traço todo da vida, em que dedica um capítulo para tratar de sua proposta de aproximação com os países africanos, importante e tradicional eixo da política externa brasileira.

No Itamaraty, vale dizer, cultiva-se até hoje, de modo quase dogmático, o hábito de rememorar a vida e obra de célebres diplomatas do passado, em um compreensível esforço de continuidade, próprio das burocracias modernas. O exemplo mais emblemático dessa tradição é a figura do patriarca da diplomacia brasileira, o Barão do Rio Branco, estadista responsável, entre outros feitos, pela delimitação negociada – e portanto pacífica – de quase a totalidade das atuais fronteiras nacionais, durante o período alcunhado por estudiosos das relações internacionais de “A Era Rio Branco”, entre 1902 e 1912.

Embora em menor grau de relevância que seu antecessor da virada do século, uma impalpável cultura institucional tende a incluir o nome de Gibson Barboza no panteão de grandes quadros diplomáticos. O motor desse empreendimento é a percepção de que sua atuação externa, tida por certa universidade tecnocrática como ao mesmo tempo universalista e terceiro-mundista, teria favorecido a posterior guinada do Brasil no sentido da condenação ao colonialismo europeu – e português, mais especificamente – e do reconhecimento da independência de países africanos. Importante registrar, não obstante, que durante toda sua gestão à frente das relações exteriores (e até a eclosão da Revolução dos Cravos em Portugal, em abril de 1974) o país alinhou-se em grande medida às posições defendidas pela ditadura salazarista nos principais foros internacionais…

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Em 1973, o advento do golpe militar no Chile, que resultou na morte do presidente Salvador Allende e implantou uma das ditaduras mais cruéis de toda a América Latina, trouxe sérias implicações à comunidade de centenas ou milhares de brasileiros residentes naquele país, muitos deles na precária condição de asilado político, após escapar da perseguição no Brasil. A intensidade da repressão durante os primeiros meses do recém-instaurado governo de Augusto Pinochet fez com que o principal palco esportivo de Santiago, o Estádio Nacional de Chile, fosse transformado em campo de concentração provisório e principal centro de tortura e execução da oposição política. Em apenas dois meses de funcionamento, cerca de 40 mil presos políticos de diferentes nacionalidades passaram por suas dependências, e entre eles se contavam o brasileiro Washington Alves e seu filho mais novo, então com apenas 17 anos.

Washington (ou “Óshtin”, como era chamado em casa) é oriundo de uma família conservadora de fazendeiros da região do Vale do Rio Doce, no interior de Minas Gerais. Em meados do século XX, ao tomar contato com a literatura e prática comunista, decidiu-se pelo caminho da militância. Filiou-se então ao Partido Comunista Brasileiro, vendeu suas terras e partiu com os filhos e a esposa, filha de pastor protestante e integralista convicto, para o interior do Mato Grosso do Sul, em 1951. Sua missão: organizar a resistência camponesa e lutar contra a grilagem de terra no entorno da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, projeto de expansão econômica para o oeste proposto por Getúlio Vargas.

Os caminhos da política nacional levariam a família a percorrer muitas outras cidades e a abraçar causas diversas. Com o golpe militar de 1964 e suas pulsões de morte (o império de Tânatos), Washington passou a prestar apoio a diversas organizações clandestinas e, junto com Carlos Marighella e outros, estruturou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), peça-chave no tabuleiro da resistência à ditadura. Na madrugada de 31/12/1969, porém, valha-me Rubem Fonseca!, seu chão desabou, quando o delegado Sérgio Fleury, chefe do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-SP), invadiu com outros dez policiais a sua casa na periferia de São Paulo, levando-o preso, debaixo de forte tortura física e psicológica, que se estenderia pelos dias, semanas e meses seguintes…

Em uma ação frustrada, uma das filhas de Washington recorreu a um expediente inusitado, mas que havia funcionado em outras poucas ocasiões durante aqueles anos estranhos: em 1o de julho de 1970, junto com seu esposo e mais dois companheiros de luta armada, sequestraram uma aeronave Caravelle, da empresa de aviação Cruzeiro do Sul, com o objetivo de permutar os passageiros por 40 presos políticos, entre os quais estariam seu pai e outros militantes da ALN e do MR-8. O voo percorria o trajeto normal entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, quando, um pouco antes da escala prevista em Guarulhos, o sequestro foi anunciado. Após o retorno forçado ao aeroporto do Galeão e cerca de 5 horas de tensas negociações, militares da Aeronáutica decidiram invadir o avião e, ao cabo do tumulto gerado, um dos militantes foi morto e o grupo, preso.

A repercussão e desdobramentos do episódio foram catastróficos para toda a família, que teve de arcar com o peso do autoritarismo vigente – e de forma desinibida. Além do genro e da filha, que permaneceu presa por quase uma década e totalmente incomunicável durante os 2 primeiros anos de cárcere, a esposa de Washington e demais filhos foram presos em diferentes momentos e igualmente torturados. Um relato comovente sobre a situação vivida por eles após esse “infeliz Ano Novo” pode ser encontrado no livro Memórias das mulheres do exílio.

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Gibson Barboza chefiou o Ministério das Relações Exteriores entre os anos de 1969 e 1974, período que coincide com a presidência do general Emílio Garrastazu Médici e a que o espirituoso Cristóvão Tezza se referiu, no romance O Pai Eterno, como “ditadura burocrática”. Efetivamente, com os doze artigos do Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, consolidou-se no Brasil o arcabouço jurídico que viria a azeitar as engrenagens de repressão política e violação dos direitos humanos, em escala inédita na história nacional.

Vivia-se então os chamados “anos de chumbo”, e o Itamaraty, como parte integrante do governo federal, desvirtuou-se, contribuindo ativamente com o esforço da administração pública no sentido de supressão da cidadania, dentro e fora do Brasil. Além da Divisão de Segurança e Informação (DSI), que em 1967 substituiu a Seção de Segurança Nacional (SSN), foi criado no mesmo ano o Centro de Informações do Exterior (CIEX), estrutura clandestina que operava nos moldes de um serviço secreto na busca de informações. Ambos os órgãos, subordinados diretamente à alta chefia do ministério, atuavam na vigilância dos brasileiros fora do país e na produção de relatórios para subsidiar a atuação do Serviço Nacional de Informações (SNI) e órgãos de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal. Da mesma maneira, e com maior intensidade no âmbito da Operação Condor, que promoveu coordenação imoral entre as ditaduras do Cone Sul, todas as missões diplomáticas e repartições consulares brasileiras no exterior estiveram integradas de alguma forma à política repressiva em curso, segundo documentos localizados pela Comissão Nacional da Verdade nos escaninhos do Itamaraty e no Arquivo Nacional (AN).

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A frase que compõe parte do título desta crônica da vida real (“Temos que sair do DOI-CODI”) foi tomada emprestada do depoimento dado em 2013 por uma das filhas de Washington à Comissão Nacional da Verdade, ao tentar verbalizar a dificuldade que ex-presos políticos tinham – e continuam a ter – de sair psicologicamente dos porões da ditadura, navios negreiros contemporâneos, onde – de forma alegórica ou não – a carne também era cortada com uma faca, e pimenta e vinagre eram esfregados, a fim de tornar a oposição política mais dócil.

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Em Na diplomacia, o traço todo da vida, Gibson Barboza dedica um capítulo a sua atuação por ocasião da série de sequestros diplomáticos ocorridos no Brasil ao longo do ano de 1970: o cônsul-geral do Japão em São Paulo (março), o embaixador da então República Federal da Alemanha (junho) e o embaixador da Suíça (dezembro). A estratégia dos grupos guerrilheiros envolvidos nas ações passava por exigir a libertação de presos políticos em troca pela autoridade estrangeira em questão, recurso que já havia sido utilizado pela luta armada em setembro de 1969, quando o sequestro do embaixador dos Estados Unidos Charles B. Elbrick levou o governo brasileiro a libertar 15 presos políticos, embarcados para o México em avião da Força Aérea Brasileira.

Gibson Barboza retrata de forma minuciosa, entre elogios a militares e a si próprio, os bastidores dos debates havidos no seio do governo Médici sobre o tratamento apropriado a ser dispensado a cada caso. Por ordem expressa do general, o comando das operações caberia ao chanceler, no front externo, e ao ministro da Justiça e ao chefe do SNI, no interno. Mais adiante, o texto aborda a tentativa brasileira – felizmente fracassada – de impor limites ao instituto do asilo diplomático, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, e tece comentários sobre o complexo quadro político brasileiro de então, de forte polarização. Por fim, surpreendentemente alheio à realidade em que o país estava mergulhada, o capítulo encerra-se com um testemunho de Gibson Barboza em defesa da integridade do presidente Médici, que teria, segundo ele, proibido terminantemente a prática da tortura em seu governo.

O chanceler afirma que à época “as coisas não eram tão claras”, embora “hoje (..) estou persuadido de que houve abusos na resposta à subversão, de que a repressão foi, muitas vezes, desnecessariamente violenta e cruel”. O exímio observador da realidade que desponta da leitura da obra parece acuado em seu mea culpa; vacilante, desequilibra-se e cai da corda bamba [de sombrinha], ao tentar justificar seus patrióticos serviços prestados ao governo, quem sabe, mais violento da história republicana brasileira.

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Washington foi um dos 70 presos políticos trocados por ocasião do sequestro do embaixador suíço, banidos do país e embarcados para o Chile, em voo da VARIG, em 1971. Sua família, com exceção da filha e genro ainda presos no Rio de Janeiro, conseguiu fugir do Brasil de forma clandestina, via Mato Grosso e Bolívia, com o apoio, entre outros, dos frades do convento dos Dominicanos, em Perdizes, São Paulo. Já reunidos em Santiago, o golpe de Estado que derrubou Allende, como mencionado anteriormente, rompeu o cotidiano estabelecido e levou Washington e seu filho mais novo ao cárcere do Estádio Nacional, impondo novos rumos à família.

Após intensas negociações, que envolveram governos e agências das Nações Unidas, o Chile concordou com a libertação dos brasileiros presos, que seriam recepcionados por terceiros países. Para os poucos nacionais que insistiram em regressar ao Brasil, seria necessária a solicitação de salvo-condutos junto às autoridades chilenas. Em resposta, ao invés de acelerar os trâmites burocráticos e garantir o pronto retorno desses cidadãos ao país, o governo brasileiro preferiu realizar um levantamento diligente de informações sobre cada prisioneiro e, para isso, enviou a Santiago equipes de militares e policiais para interrogá-los e, segundo depoimentos, torturá-los.

Felizmente para Washington e os seus, a social-democracia da Suécia aceitou recebê-los em seu território, onde vieram a passar muitos invernos. A história de seu exílio físico terminaria somente em 1979, na esteira do tortuoso processo de distensão política levado adiante pelo governo do general Ernesto Geisel, que culminou com a decretação da anistia geral e o retorno de tantos brasileiros desterrados mundo afora.

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Nota no 1: A extensa delegação que acompanhou Gibson Barboza em seu grandiloquente “périplo africano” era composta, à exceção do médico responsável pelo cuidado físico e mental do chanceler, apenas de homens brancos (diplomatas, oficiais militares, jornalistas, etc.), uma alegoria quase anedótica da cultura autoritária da época, aduladora de um passado escravocrata ainda presente.

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Nota no 2: Um dos principais instrumentos da resistência africana contra o colonialismo europeu foi o rifle de assalto russo Kalashnikov, desenhado, como sua sigla sugere, em 1947, nos primórdios da Guerra Fria. Em pouco tempo, o versátil fuzil inundou florestas, savanas e desertos africanos, em uma verdadeira cruzada anti-colonial. Por conta de sua importância na ferrenha guerra travada contra a ocupação portuguesa, após alcançar a independência em 1975, o Estado de Moçambique optou por grafar em sua bandeira, ao contrário dos mais óbvios foice e martelo, a imagem de uma AK-47.

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Nota no 3: Washington veio a falecer aos 74 anos de idade, em 1995, enquanto morava com seu filho mais novo em Cariacica, no Espírito Santo. Não deixou herança em termos pecuniários. Seu espólio, porém, é riquíssimo em experiência humana e no exemplo de coerência e defesa de ideais caros à humanidade. Em seu caso, a luta de uma vida foi por justiça social.

Um pouco antes de desaparecer, talvez um tanto desgostoso com o rumo que o país tomava, fez questão de queimar todo seu acervo pessoal (cartas, documentos e recortes de jornal), destruindo assim uma pequena memorabilia da própria história do Brasil contemporâneo. Não queria deixar à posteridade rastro de sua profícua militância política, não se sabe se por medo de demônios do passado ou das incertezas futuras. Em um como em outro caso, compete agora a seus descendentes, espalhados por diversos estados brasileiros e em países como Suécia e Moçambique, carregar, junto a cicatrizes físicas e afetivas (marcas de traumas reais e angústias presentes), o seu importante legado de resistência.

"Temos que sair do DOI-CODI", ou Cidadanias Assimétricas

Grupo de 70 presos políticos brasileiros trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, um pouco antes de embarcar em avião da Varig para Santiago do Chile (14/01/1971).



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Gustavo Buttes

É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.

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