Foi andando a pé pela cidade que pude perceber a beleza e os efeitos da ambição: o desmesurado apresentado de maneiras diversas – obstáculos, degradação, interditos, desencontros – na dimensão de tempo singular que pulsa em uma megalópole.
Ao movimentar-se na cidade cria-se um lugar de enunciação, lida-se com diferenças, abriga-se o dissenso. O discurso urbanístico excludente não leva em conta os detritos, os espaços de ranhura, de tropeço, a árvore que irrompe na calçada criando outro fluxo. É preciso resgatar um espaço mítico e poético que nos permita reinventar a cidade, criando novos circuitos pulsionais.
A ficção da cidade é construída a partir dos espaços ocupados e, na assepsia dos vidros fechados dos automóveis, muito se perde da sua legibilidade e complexidade. Há uma topografia que só pode ser estabelecida por pedestres que, caminhando, percebem, do rés do chão ao céu, os cheios e vazios do texto urbano: os pássaros, as árvores, as calçadas, os passantes, a estranheza e a poesia do cotidiano que, por si só, não vem à superfície.
Os marcos totalizadores da vida urbana com grades, muros e sistemas de segurança reiteram os dispositivos e procedimentos técnicos capazes de criar uma sociedade disciplinar – diferenciando, classificando, hierarquizando – uma lógica de condomínio trabalhada com acuidade pelo psicanalista Christian Dunker: “Ao entrarmos em um desses modernos condomínios, projetados com a mais tenra engenharia urbanística, temos o sentimento pacificador de que enfim encontramos alguma ordem e segurança. A polícia parece estar realmente presente, apesar de particular. As ruas estão bem pavimentadas e sinalizadas, apesar de vazias. Crianças brincam em estado de natureza. As casas exibem seu indefectível jardim frontal, sem cercas. Tudo o mais é funcional, administrado e limpo. A imagem desta ilha de serenidade captura as ilusões de um sonho mediano de consumo. Uma região isolada do resto, na qual se poderia livremente exercer a convivência e partilhar o sentido de uma comunidade de destino. Além de tudo estamos entre iguais. Protegidos pelos muros que anunciam: aqui vigora um estado especial da lei. Ao passar pela guarita prepare-se para ser fichado e filmado: você está entrando no sistema. Antes mesmo de possuirmos nossos próprios condomínios fechados, aprendemos a associá-los com a imagem de felicidade, que não sem alguma ironia, podíamos colher no cinema e na televisão”.
As estruturas de poder – aqui incluindo saúde, segurança, justiça e trabalho – pavimentam verdadeiros processos de exclusão nas cidades. Os errantes, andarilhos e moradores de rua não podem experimentar passos sem medo, fome ou hesitação.
Em resposta a questões contemporâneas, em “Vida precária, vida passível de luto” Judith Butler aborda modos culturais de regular as disposições afetivas e éticas no espaço público. Ela assinala que uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for, antes de mais nada, considerada viva. Se, de entrada, certas pessoas não são qualificadas como vidas abre-se o precedente para que possam ser violentadas e abusadas por operações de poder. A condição precária de algumas vidas nos coloca diante do dever ético de repensar os lugares de privilégio, a vulnerabilidade, a dor, a subsistência corporal e a falta de pertencimento social. A violação e a violência a que certos corpos estão submetidos na rua e a anulação da condição de serem reconhecidos como sujeitos são questões públicas que deveriam dizer respeito a todos. E aqui é preciso destacar o trabalho incansável do padre Júlio Lancellotti que, junto à população de rua, lembra que somos limitados por normas de reconhecimento muito empobrecidas.
Essa é a mesma interrogação sustentada por Judith Butler: quais categorias, convenções e normas preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento e tornam possível o ato do reconhecimento propriamente dito? Ela assinala que “a moldura nunca determinou realmente, de forma precisa o que vemos, pensamos, reconhecemos e aprendemos. Algo ultrapassa a moldura que atrapalha nosso senso de realidade. Em outras palavras, algo acontece que não se ajusta à nossa compreensão estabelecida das coisas”. Essa moldura forjada no seio do capitalismo nos dá uma visão turva da profundidade psíquica e humana. O clamor pela justiça e pelo fim de uma violência naturalizada, que padre Júlio estabelece caminhando entre os desabrigados, é uma aposta que se faz na vida, expondo os planos que procuram enquadrar uma situação infinitamente complexa e matizada. Ver em cada vida uma história e dar-lhes a possibilidade de ficção é salvaguardar o lugar da enunciação, apropriar e assumir a língua da cidade, criar coletivamente o espaço.
Impossível não perceber nas ruas o aumento vertiginoso de pessoas em situação de vulnerabilidade extrema. Andar torna visível o invisível. Caminhando se vence o medo e se descobre que os jogos dos passos moldam o espaço, tecem lugares e indicam uma maneira de estar no mundo. O ato de caminhar inclui na vida as variações e improvisações: atalhos, desvios, um espaço que admite a alteridade. Diante das contingências e dificuldades da cidade é preciso arriscar e transgredir. No traçado gráfico urbano, algo do desejo pode se revelar no um a um, forjando o que chamamos de solo comum: caminhar com o outro. Esse destino ético padre Júlio reverbera em sua prática cotidiana, subvertendo a lógica opressora e as práticas sociais maquínicas e desumanas, transformando a cena, se colocando em trânsito, escutando as polissemias do espaço urbano.
É justo aproximar a potência do pensamento de Simone Weil à imensidão da ação de um homem que revela, nos abismos de uma cidade, uma forma extrema de amor: as reflexões levantadas pelo padre se apresentam revestidas pela ação e pela dimensão do ato. É uma vida dedicada ao enigma que provém do amor, que é também, nas palavras da filósofa, “onde os contraditórios coincidem e, assim, Deus é humano e divino, uno e trino, forte e fraco”. E isto faz de Deus não um soberano absoluto, mas uma pulsação que rebate toda forma de poder e aniquilação da diferença, uma possibilidade de relação com o vazio, uma forma de sustentar a pergunta que Simone Weil ecoa e que padre Júlio sustenta em ato: “A plenitude do amor ao próximo é simplesmente ser capaz de lhe perguntar: qual é o seu tormento?”.
Que possamos, no gesto cotidiano de caminhar, inventar espaços democráticos, inundar as ruas de vida, desafiar cálculos e, vez ou outra, levitar na paisagem. Que cada um possa assumir uma cartografia própria, aparecer e desaparecer diante do infinito da cidade sem ter a existência violentada pela invisibilidade..
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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