Sob(re) o regime dos aiatolás – IREE

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Sob(re) o regime dos aiatolás

Gustavo Buttes

Gustavo Buttes
Diplomata



Começo a escrever estas efêmeras memórias, expressão batida, eu sei, desde o pacato vilarejo de Folosi, no extremo norte do Zimbábue. Meu hotel situa-se a poucas centenas de metros das famosas cataratas de Vitória, ou Victoria Falls, se preferir o anglicismo, exibição de força da natureza que rendeu à monumental queda d’água um lugar na lista das chamadas sete maravilhas naturais do mundo, ao lado do monte Everest, Grand Canyon, aurora boreal, dois mais que não me ocorrem agora e a baía da Guanabara – e digo isso sem ser carioca, a lista foi objeto de deliberação e votação por um comitê internacional especializado em temas ambientais.

Foi exatamente nesta região triplamente fronteiriça entre Zimbábue, Zâmbia e Botsuana que, há pouco mais de um século e meio, aportou o explorador escocês David Livingstone, que também era médico e missionário cristão, supostamente o maior desbravador de todos os tempos de desertos, savanas e florestas da África. Seu trabalho era encarado por ele e demais súditos da rainha dos bretões como espécie de sacerdócio divino, a humilde ideia de povoar a Terra, levar a palavra a todos os gentis e com isso preparar o terreno para o retorno do messias. Esses fatos juntos ajudam a explicar por que Livingstone, trazido sabe-se lá por quais bons ventos e maus tempos, terá dado o nome que deu ao penhasco que encontrou em meio ao curso do poderoso rio Zambeze. Certo é que o doutor enfrentou muitas doenças para chegar aqui e outras tantas para progredir em sua última grande expedição: depois de haver cruzado o continente de leste a oeste, percorrendo quase trinta mil milhas, sejam lá quantos quilômetros forem, queria agora cruzá-lo de sul a norte, alcançando como destino final a foz do sagrado rio Nilo, que, não por mais um acaso, localiza-se no lago Vitória, ou Lake Victoria, em Uganda, cujo nome já se terá apercebido qualquer um a quem se refere.

Nesse contexto de terras desvirginadas por brancos foi que surgiu um dos jargões mais conhecidos da literatura ocidental do século XIX, atribuído ao norte-americano Henry Morton Stanley, explorador que ajudou o rei Leopoldo da Bélgica a colonizar a bacia do Congo e jornalista do matutino The New York Herald. Quando a alta sociedade anglófona da ética protestante deu-se conta, durante um chá da tarde ocasional, de que o famoso escocês havia deixado de enviar notícias das terras incivilizadas, pronto, o desconforto tornou-se logo em ação: o jornal nova-iorquino incumbiu-se de arcar com as despesas de uma operação de resgate, que renderia boas manchetes, terá pensado o editor, encabeçada por Stanley e tocada adiante por duas centenas de mal pagos nativos africanos. Em novembro de 1871, pois, após meses de sucessivos mal-estares tropicais, malárias e diarréias, o grupo avistou-se com o esquálido explorador vitoriano, que desfalecia em uma cabana às margens do lago Tanganica, na Tanzânia:

Doctor Livingstone, I presume?

Eu, fosse o doutor em questão e estivesse como ele no leito de morte, mandaria aos infernos o americano junto com seu sarcasmo, afinal, quem mais haveria de ser? Embora o corpo estivesse prejudicado, bastante, a cara era a do Livingstone himself, não há de ser grande fisionomista para percebê-lo. Como sabemos, por mais refinadas que sejam, ironias do gênero, em momentos críticos, não caem bem na boca dos pragmáticos habitantes do novo mundo.

Fato é que o esforço físico e monetário do resgate foi em vão, como em última análise são todos os esforços humanos. Livingstone recusou-se a voltar à Grã-Bretanha, mesmo diante da improbabilidade de êxito de sua expedição ao Nilo e dos apelos de Stanley, que no fim, com o sucesso da missão, suponho eu, poderia vender uma boa história a seus leitores. Pouco tempo depois do bucólico e derradeiro encontro, Livingstone, o legendário precursor e pai de todas as igrejas evangélicas que hoje povoam as terras africanas, e as brasileiras estão no topo da lista, homem cujas aventuras estão registradas para sempre pela letra escrita de seus diários e dos periódicos de então, veio a falecer de caganeira, com o perdão da vulgaridade, orando, praying to God, na Zâmbia, perto de onde estou, em 1o de maio de 1873, dia do trabalhador, se não naquele ano, por contingência histórica, uma vez que a efeméride surgiria somente em Chicago em 1886, hoje mais que nunca, consolidada que está a data no calendário da esquerda proletária.

Seu coração e vísceras foram enterrados debaixo de uma árvore, ali mesmo, não consigo entender o porquê, apesar do simpático simbolismo, e os ossos e demais restos transportados empacotados em sal grosso à terra natal, onde jazem hoje com o senso de dever cumprido nos subsolos da abadia de Westminster, esta sim o verdadeiro coração e vísceras do poder inglês no século XIX.

 

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Como mencionei inicialmente, este texto é sobre efêmeras memórias, mas as minhas e não as de cataratas, lagos ou missionários escoceses, cujas perambulações de outrora prenunciaram a galopante corrida pela colonização dos povos, riquezas e belezas do continente africano, divididas pelos europeus entre si durante o rebuscado Congresso de Berlim de 1885, momento histórico que se convencionou chamar pelo termo Scramble for Africa, em inglês, claro. O fato que me convém nisso tudo porém é mais elementar. Como li em algum canto, verdade ou não, Livingstone se teria valido do apoio de árabes islâmicos, que traficavam escravizados africanos via Zanzibar, para sobreviver durante seus últimos anos, meses e dias sobre esta terra do bom Alá. Eu sei, pode soar estranha tal narrativa que liga um servo temente ao Deus cristão e cidadão do mundo civilizado a ignotos mercadores de carne humana, não seja a ironia literária apenas para comprovar como o destino prega boas peças e, por cima disso, que a história escreve certo por linhas tortas.

Ocorre-me querer saber mais sobre os árabes que desceram aos confins austrais da África, por motivos ao mesmo tempo valiosos para uns e escusos para outros, são convenções sociais e o homem é também isso, convenções sociais, enfim, interessa-me a ideia de expansão gradual do islã, ao longo de séculos, a partir da conquista de Meca por Maomé em 629 d.C., depois de Cristo, desculpe o deboche cronológico, e a vitória do califado sobre meio mundo antigo, até porque o novo mundo só surgiria em 1492, embora os chineses, para quem todo fato tem três versões, teimem que não.

Claro, não tenho competências para envidar investigações de tal monta, deixo-as para cientistas sociais e historiadores, muito mais capazes que eu nesse e muitos outros aspectos. Meus conhecimentos sobre o islamismo, verdade seja dita, são bastante rasos e mais ligados a alguma literatura de poetas persas, como Rumi, Hafez e Ferdosi, com seus versos dísticos sufis, divãs e xanamés épicos. E também a informes e telegramas diplomáticos confidenciais, uns bons e outros ruins, exigidos pelo meu empregador, o governo brasileiro, e escritos durante minha missão de três anos no Irã, sob(re) o regime dos aiatolás, em referência ao país shiita, embora a expressão possa confundir algum brasileiro desavisado.

 

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Não é de hoje, nem da época das expedições mirabolantes do doutor Livingstone, que a maioria dos países ditos ocidentais ignora completamente a existência de inúmeras vertentes e seitas dentro do islamismo, cada uma com origens, liturgias, tradições, iconografias e perspectivas de mundo particulares, mas todas ultimamente lançando raízes na vida e legado de Maomé, do século VII em diante, portanto.

O ramo sunita é hoje o mais difundido e estudado no mundo, pelo fato de representar a fé da maioria dos muçulmanos e ser a religião de estado de grande parte dos países do norte da África e Oriente Médio. A vertente shiita, por seu turno, ocupa o segundo lugar nessa hierarquia e constitui a principal comunidade religiosa em países como Irã, Iraque, Bahrein e Líbano, além de possuir importante representatividade na Índia, Paquistão, países do golfo Pérsico (ou Arábico, a depender da preferência ou declinação étnica do leitor) e na franja leste da África.

De forma bastante sucinta, pode-se dizer, sem trocadilhos, que o pecado de origem do cisma religioso entre uns e outros relaciona-se à questão sucessória de Maomé, ou seja, a quem caberia o governo espiritual (imamato) e terrestre (califado) do império após sua morte, situação que ganhou proporções incontornáveis pelo fato de o profeta ter tido numerosa prole, não porque quisesse, mas constrangido por suas mais de doze esposas, ao que consta, conquistadas, se não pela força da espada ou da flecha do Cupido, pela necessidade de tecer alianças com importantes clãs árabes. Pois bem, com seu passamento, uma assembleia de notáveis elegeu por consenso Abubacar, seu principal companheiro e pai de uma das esposas, como herdeiro imediato, que foi por sua vez sucedido pelos califas Omar, Otomão e Ali, respectivamente, este último primo e genro do profeta, após contrair casamento com sua filha Fátima.

E foi assim que, em apenas algumas décadas após a morte do ungido de Alá, porque a hora chega para santos e profanos, cristãos e muçulmanos, o império islâmico expandiu-se da capital Medina, na Arábia Saudita, por partes substantivas da Ásia Central e do subcontinente indiano, Oriente Médio, norte da África, Cáucaso e frações do sudoeste europeu, conquistando, entre outros, territórios caros aos impérios persa, bizantino e egípcio.

A centralidade da figura de Ali é afinal o que vai determinar o desenvolvimento histórico posterior, distinguindo os caminhos que os ramos sunita e shiita hão de seguir dali em diante. Enquanto os primeiros serão obedientes à autoridade do quinto califa, Omáuia, da casa dos Omíadas de Meca, que assume o poder na esteira do assassinato de Ali no Iraque, durante as rezas do mês sagrado do ramadã, para os shiitas é a dinastia do próprio Ali que deveria ter comandado a comunidade islâmica, pelo vínculo sanguíneo com o profeta, por meio dos únicos filhos que teve com Fátima que atingiram a idade adulta, Hassan e Hussein.

Como se vê, não é de hoje que poder é questão eminentemente familiar, não foi assim nas Arábias nem assim haveria de ser nas Américas, não há por que se afligir.

Ao descobrir essa fascinante epopéia medieval, que se olhada minuciosamente lembrará a história de toda e qualquer política e religião, da antiguidade à era moderna, passei a achar menos estranho que, quando não o do próprio Ali, três em cada cinco iranianos que conheço têm o nome de um ou do outro filho ou, por imperativo de gênero, o da esposa. Não pretendo com essa questão homônima ofender ninguém, ciente que estou de que também no Brasil temos lá nossos Josés e Marias, igualmente fiéis, se não mais, a preceitos religiosos de outras épocas, e mais antigas até.

Enfim, essa volta toda é para dizer o óbvio, que, ao longo do último milênio e meio, foi o movimento nada extático de unificação e pulverização da fé islâmica em seitas e facções que, fundindo-se às tintas dos sucessivos impérios persas, pintou o quadro mais acabado do Irã moderno. É a partir dessas lentes e foco que um bom observador deve analisar a densa e cheia de camadas realidade do país, e não através dos monóculos de prata com que velhos exploradores ingleses, franceses e alemães viam o mapa-múndi, sob o ótica da ganância e lucro fácil.

 

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Quando cheguei ao Irã, em princípios de 2013, logo percebi que meu entendimento sobre a realidade local era bastante enevoado, e atribuo minha ignorância a dois principais fatores. De um lado, boa parte das informações sobre a república islâmica que transpirava na imprensa brasileira eram limitadas ou, pior ainda, enviesadas. De outro, e aqui assumo certa responsabilidade, nunca me senti efusivamente interessado pelo que ocorria nas tumultuadas geografias da Ásia Central, para além do relatado em enciclopédias de caixeiros-viajantes e páginas de livros didáticos sobre impérios da antiguidade, nas quais, a propósito, a dinastia persa aquemênida, de Ciro, Dário e Xerxes, sempre encontrou lugar privilegiado.

Um tal cenário, que se retroalimenta de desinformação e desinteresse, é reflexo em boa medida das distâncias que separam os dois países, e por que não continentes, barreiras não apenas geológicas ou históricas, mas também de nuances sociais e culturais mais imediatas. O Irã é invariavelmente associado a imagens negativas no imaginário da maioria das sociedades modernas. Essa construção estereotípica do país é fruto de dinâmicas mais amplas, que vão além do que se lê em portais de notícias que informam a população ou capas de jornais que quase ninguém lê. Ela é forjada em gabinetes ministeriais e sedes de corporações transnacionais e orienta-se por interesses de ordem política, econômica e militar, o hard power das grandes potências, em que tanto se regozijam analistas internacionais e diplomatas terceiro-mundistas saudosos de Machiavelli, Richelieu e Kissinger.

Um bom exemplo dessa dinâmica envolve as aspirações do Irã em torno de seu programa nuclear. Em sua gênese, em fins da década de 1950, o governo do xá Reza Pahlavi (ou caesar ou kaiser ou czar, tanto faz, que a raiz é a mesma e significa imperador) contou com o apoio inestimável da comunidade internacional, sob a condição tácita de que mantivesse as torneiras dos hidrocarbonetos do golfo abertas à exploração das grandes petrolíferas estrangeiras. Um famoso episódio retrata o apogeu do poder imperial no Irã: em outubro de 1971, pouco antes da primeira crise global do petróleo, que deu origem ao cartel dos países exportadores (OPEP) e de que tanto se falou em edições passadas do Jornal Nacional, o xá e sua midiática esposa Farah, espécie de Diana dos anos 60, ofereceram suntuoso jantar de gala em comemoração aos dois mil e quinhentos anos do império persa. Em tendas montadas na cidadela histórica de Persépolis, no meio do deserto, armou-se um regabofe para seiscentos convidados, puro-sangues de tudo que é lugar, o duque de Edinburgh e a princesa Anna, os reis da Bélgica, Dinamarca, Noruega, Jordânia, Nepal, príncipes e princesas às dúzias, cerca de vinte presidentes dos cinco continentes, entre eles Emílio Garrastazú Médici, veja só, que entrou de gaiato no rol de presidentes, porque não havia categoria específica para ditadores, e nem conviria, poderia causar desconforto no convidado, os primeiro-ministros da França, Suíça, Itália, o vice-presidente americano, enfim, a lista é longa e acho que a ideia já foi passada, todos souberam esperar pacientemente na fila para beijar a mão e, fosse hoje, tirar uma selfie com o pomposo casal real. Não obstante, apenas oito anos após o banquete, servido pelo restaurante Maxim’s de Paris, e do brinde oficial com Dom Pérignon Rosé 1959, o império milenar estava em ruínas.

A vitória do aiatolá Khomeini e sua revolução islâmica shiita, em 1979, depôs o xá e o levou a fugir às pressas com sua família em avião que, dizem as más línguas religiosas, quase não decolou, de tanta jóia que levava. Uma das primeiras medidas do novo regime, de forte verniz nacionalista, foi a estatização das riquezas minerais do país, deixando as empresas petrolíferas a verem navios, literalmente. Ato contínuo, como dizemos os burocratas, o programa nuclear, que andava bem, obrigado, virou tabu, transformou-se em um dos dossiês diplomáticos mais sensíveis da agenda internacional, servindo desde então como instrumento de pressão internacional contra os teocratas shiitas e suas aspirações soberanas.

 

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Foto tirada na praça Azadi, Teerã, em 11 de fevereiro de 2014, durante as celebrações alusivas ao Dia da Revolução Iraniana.

No Irã, visitei lugares incríveis, paisagens exuberantes, indescritíveis, as majestosas ruínas de Persépolis e Pasárgada, mas não somente, o túmulo do profeta bíblico Daniel, aquele mesmo, o dos leões, e o da rainha Ester, supondo sejam eles quem dizem serem, senti odores humanos e de animais novos, cheiros de temperos que não conhecia, vi cores e tonalidades inéditas, ouvi assim como o minimalista Philip Glass todo um universo musical ligado a modos orientais, místicos, de dervishes não rodopiantes, a culturas zoroastras anciãs que idolatram o fogo e pulam fogueiras à são João na última quarta-feira do calendário persa, diferentemente dos nômades que têm lá seus próprios ritos e crenças e ainda hoje, século XXI, sobem e descem de montanhas ao sabor da natureza, vivem aliás nos tempos da natureza, produzindo o próprio laticínio e jogando futebol em fendas da cordilheira próxima a Isfahan, cidade dourada que foi sede de impérios e que hoje se gaba de seus azulejos, minaretes e mesquitas, dentro de uma das quais encontrei na parede uma pintura do século XV ou XVI, não me lembro bem, de um casal de mulheres lésbicas, uma masturbando a outra, dentro da própria mesquita, afinal religiosas também amam, do mesmo jeito que eu amei tudo que vi lá, amei o deserto onde se registrou a temperatura mais alta no planeta até hoje, sessenta e tantos graus célsius, amei esquiar nas montanhas a norte de Teerã, a ilha de Qeshm no extremo sul, onde a etnia e cultura são mais árabes e as mulheres usam máscaras multicoloridas, como a da noiva que naquela ocasião nos convidou tímida a visitar seu quarto especialmente preparado para a noite de núpcias, que ocorreria no dia seguinte, pobrezinha, estava aterrorizada, mas feliz também, desse jeito somos nós, ambivalentes nas emoções e dúbios nas razões, com exceção dos aiatolás, esses sabem de tudo e a todos ensinam versos corânicos e bons costumes, se não pelo amor, pela dor, pois foi para isso que criaram a polícia moral, tantas vezes importunando jovens pias à entrada dos bazares, estejam lá para namorar ou para comprar tapetes e quilins, os mais lindos que já vi e, claro, comprei, ou melhor, compramos, pois sozinho não tenho ânimo de comprar nada, compramos os de lã, que os de seda eram monopólio das famílias iranianas mais abastadas, distinção de classe muito bem marcada, como sói ser em qualquer lugar do mundo, seja você religioso, ateu ou ambos, e mais ainda no Brasil, país riquíssimo em pobres, que muito sabem sobre a trindade divina e pouco sobre a materialista, Nietzsche, Marx e Freud, não que a primeira ou a segunda tenha qualquer utilidade no Irã em que morei…

 

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A eleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad para presidente, em 2005, ele que durante palestra ministrada na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, afirmou que no Irã não há homossexuais como em outros países, que nós não temos esse fenômeno, provocou o escalonamento da crise entre o Irã e a comunidade internacional, não pela homofobia, óbvio, que com isso os líderes mundiais não se importam tanto, mas pela oportunidade de reiterar as acusações sobre os supostos fins militares por trás do programa nuclear persa, em oposição às normas do regime de não-proliferação vigente. Esse regime jurídico, vale dizer, criado sobre os escombros de Fukushima e Nagasaki e sob o imperativo da Guerra Fria, funciona, muito grosso modo, da seguinte forma: por meio de um conjunto de acordos internacionais e respectivos mecanismos de verificação, os países que possuem a bomba atômica concordam em reduzir seu arsenal e os que não a possuem, em não adquiri-la. Sei que dito assim as regras do jogo não parecem lá muito justas, e nem devem ser, especialmente quando se sabe que, de maneira geral, apenas a segunda parte do acordo tem sido cumprida, mas isso é assunto que convém deixar aos especialistas.

A pressão internacional contra o Irã explica-se, pois, pelo risco, mais simbólico do que real, de desfazimento da ordem estabelecida após a segunda guerra mundial e, esse sim mais factível, de rompimento do equilíbrio de poder regional, que traria repercussão sobre temas globais relevantes, tais como a disputa pelo controle das fontes de energia não-renovável, a guerra ao terror e o conflito árabe-israelente. No caso iraniano, a coerção manifesta-se de variadas formas, sendo a via das sanções econômicas contra instituições e indivíduos ligados ao governo e ao aparato de segurança a mais empregada, apesar dos efeitos deletérios sobre o conjunto da sociedade, como se alguém ligasse para isso.

Embora tenha tratado desse e outros temas durante os anos em que estive no Irã, em meio a um clima de excitação e certa paranoia, que envolvia boatos sobre guerra cibernética, alta espionagem e a iminência de um conflito armado, minha experiência pessoal passou de maneira geral ao largo das complexidades e vicissitudes da política internacional. Em pouco tempo, tomei conhecimento da enorme riqueza cultural do país, que se caracteriza pelo acúmulo e preservação de elementos emblemáticos de diferentes períodos históricos, desde a Pérsia antiga e suas filosofias zoroastras e maniqueístas, até a contemporaneidade ao mesmo tempo islâmica shiita e ocidentalizada, passando pela consolidação do império safávida na Ásia Central, em meados do milênio passado, época, aliás, de transição em todo o mundo.

Foi, por exemplo, em 1492, a mando da coroa hispânica e por força dos seus negócios, e fique claro que temos todos que correr atrás do que é nosso, que Cristóvão Colombo reconectou, ao acaso, em um barco a vela, repito, ao acaso, em um barco a vela, dois ramos inteiros da espécie humana, separados por mais de dez mil anos, desde o fim da última glaciação terrestre, quando o derretimento das calotas polares e consequente elevação do nível dos oceanos inviabilizaram a transumância através do estreito de Bering. Graças ao genovês o mundo voltou a ser um só, e de todo modo voltaria a ser, mais cedo ou mais tarde, a boa e velha aldeia global em que habitamos desde outras pangeias.

Somos uma espécie migrante e diversa, disse-me um botsuano que conheci na estrada, e nisso reside a beleza da experiência humana sobre a Terra, ainda que às vezes a natureza nos imponha quarentenas forçadas, como as de crianças em muitas culturas da África subsaariana, que, durante os primeiros seis meses de vida, ficam isoladas dentro de casa apenas com a mãe e um ou dois ajudantes, nutrindo-se das coisas da terra, comem mesmo um punhado de terra de vez em quando, bebem água do pântano, para que o frágil organismo se adapte ao mundo exterior e elas venham a crescer saudáveis. Somos definitivamente uma espécie migrante e diversa, aqui sou eu quem concluo, unida porém por um fio de prata que costura o planeta e atravessa eras e gerações, e quem poderá negar que os povos nativos sul-americanos de quem descendo não vieram originalmente de savanas africanas, desertos iranianos e, pelos olhinhos amendoados, estepes mongóis da Ásia Central?



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Gustavo Buttes

É diplomata de carreira e serve atualmente na Embaixada do Brasil em Moçambique. É mestre em Diplomacia pelo Instituto Rio Branco. Escreve para o IREE Cultura de forma independente, seus artigos não refletem a opinião do Itamaraty.

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