Senhoras e senhores, sofro da Síndrome do Impostor. Cada vez que abro este sítio e leio os nomes que aqui aparecem, tenho a sensação que vão me puxar pela orelha e me expulsar, sob apupos e risinhos de mofa, além de eventuais ovadas. Sempre me pergunto se minhas gracinhas têm vez num espaço tão vetusto, mas depois de muito ponderar cheguei à conclusão que sim, precisamos disso. Não necessariamente as minhas, me avisa a Síndrome, com um certo prazer mórbido. Então, enquanto não me descobrem aqui, vamos em frente.
Dizem que os africanos dizem que, quando morre um idoso, uma biblioteca se perde. Concordo plenamente, sendo que no Brasil perdemos não só as bibliotecas virtuais dos idosos que nos deixam, como também as reais, físicas, cada vez mais raras. Tenho uma história de amor por elas, sejam públicas ou privadas.
A primeira em que entrei me salvou. Estava na quinta série, um colega enorme cismou com minha cara, e prometeu “me pegar na saída”. Esgueirei-me como pude até o ponto de ônibus, quando fui encontrado. Eu era gordo, mas ele era bem mais, então consegui me desvencilhar e ainda acertei um belo chute em seu joelho, desferido com um possante Vulcabrás 752. Mergulhei no ônibus imaginando que aquela poderia ser minha última noite sobre a terra.
Matar aula não era possível. Meu pai me levava de carro e esperava que eu entrasse. Uma vez dentro era como o Inferno de Dante, toda a esperança de sair devia ser perdida. Entregue a caderneta de presença para o devido carimbo, em vez de ir para a aula resolvi me aventurar no segundo andar e ir até a biblioteca, território totalmente inexplorado até então.
De cara, aquele cheiro adocicado de livro velho. Gostaria de sentir esse mesmo cheiro no leito de morte, é uma lembrança maravilhosa. Em seguida, o olhar de interrogação da bibliotecária, uma senhora com anacrônicos óculos de gatinha e um suspeito cabelo preto. Me saudou com efusividade, e sussurrando no mais puro bibliotequês perguntou se eu tinha ficha lá. Como não tinha, prontificou-se a fazer uma na hora. Coletou meus dados e datilografou um pedaço de papel, que me entregou e que informava Urbi et Orbi que eu estava autorizado a frequentar aquele espaço sagrado e, maravilha, até a levar livros para casa.
Achei estranho ela não questionar minha presença ali em hora de aula; ela simplesmente voltou a seus afazeres (ler) e me deixou quieto. Fiquei circulando, meio sem jeito, até que me deparei com “As Aventuras de Sherlock Holmes”. Aos 11 anos já era um leitor voraz, e nunca tinha lido nada do heroico inglês. Sentei-me e devorei o livro. A campainha do recreio tocou, ela se levantou, disse que tinha que trancar a porta, se eu não me incomodava com isso. Evidentemente que não!
Em suma, li todo o volume durante o período em que deveria estar na aula. Tocou a sineta do fim do período, e ela simplesmente me olhou. Agradeci e saí, checando os cantos escuros com medo do meu desafeto surgir. Sherlock não me ensinou defesa pessoal, mas me ensinou a olhar as coisas com mais atenção. Então, transfigurado no grande detetive, fugi como um rato.
No dia seguinte estava mais tranquilo, fui sem titubear para meu local secreto. Decepção, ela não me deixou ficar. Apenas disse:
-Hoje não. Imagino que os ânimos já tenham serenado, o perigo deve ter passado. Apareça aqui no final da aula para me dar um tchau.
Não entendi como diabos ela adivinhou o que aconteceu. Ela devia ter lido TODOS os Sherlock Holmes para ter essa enorme capacidade de dedução. Ao menos foi o que pensei na época. Hoje – quando li eu mesmo todos os Sherlocks – deduzo que ela viu um menino em hora estranha com uma expressão assustada e ligou os pontos. E que aparecer depois da aula seria apenas uma precaução, para não correr o risco de me encontrar com meu Moriarty no ponto de ônibus.
Dessa história, que recordei há pouco tempo, veio a origem de meu amor pelas estantes cheias. Na primeira vez em que me vi em apuros encontrei refúgio ali, ali era o lugar sagrado. Num episódio do Zorro, seriado da Disney que passava na TV, um foragido se refugiava na igreja, e os soldados do vilão, capitão Monastério, não podiam entrar lá. Achei que uma biblioteca devia ser mais segura, mas no filme era a igreja – e demorei mais de 40 anos para perceber a ironia, o capitão tinha um nome sinônimo de mosteiro. Ainda bem que não percebi na época, teria me dado um choque cognitivo (eu fui uma criança complicada).
Ao longo da vida mantive minha fixação. Fui sócio de algumas, carrego a culpa de ter ficado com um “Geografia de Dona Benta” pois a biblioteca de onde o retirei simplesmente fechou. A cada ano eu calculava de quanto seria minha multa, em pânico de ser pego e não ter dinheiro para pagar aquilo. Eu disse que fui uma criança complicada… Isso só acabou quando doei o exemplar para outra biblioteca – aos 20 e tantos anos.
Sim, a adolescência e a fase adulta não foram muito melhores…
Quando comecei a estudar música, era na Biblioteca Nacional que pesquisava as partituras, ficava horas copiando-as – a máquina de xerox estava sempre com defeito. Eles forneciam papel de música de um estoque antigo, muito amarelado pelo tempo, que combinava bem com o espaço. A gente, estudante, pegava naquilo e se sentia parte da história. Quantos compositores, intérpretes, pesquisadores, teriam usado papel daquela mesma resma para suas obras primas, seus livros, tudo?
Bibliotecas, pois, são sagradas. São impregnadas do suor mental de gerações. Mesmo bibliotecas novas recebem parte desse sopro vital milenar. Desde a de Alexandria – cuja destruição gerou lágrimas nos olhos de um menino tímido que se refugiou numa outra, séculos depois – toda vez que livros são dispostos em fila ocorre uma magia que sacraliza o local. Precisamos de mais delas, muitas, muitas mesmo.
Nem que seja para nos refugiarmos, por suaves instantes, do presidente malvado que quer nos pegar lá fora.
PS: A bibliotecária estava certa. Meu perseguidor, no dia seguinte, já tinha esquecido que queria beber meu sangue. Bibliotecárias estão sempre certas.
A coluna desta quinzena é dedicada ao poeta Joilson Pinheiro, cultivador da Biblioteca da Comunidade da Rocinha.
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Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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