A representação da população negra, correspondente a 56% dos brasileiros, nos espaços de poder político é mais do que uma pauta que causa barulho nas redes sociais e entre figuras negras que emergem cada dia mais como vozes intelectuais ou ativistas por reivindicações de respeito e diversidade.
Trata-se de uma necessidade civilizatória para a sociedade brasileira, que ainda depara-se com marcadores vergonhosos: apenas 17,8% dos congressistas, entre os ocupantes de cadeiras na Câmara e no Senado, são autodeclarados pretos ou pardos, por exemplo – números que falam mais que qualquer análise.
A título de dados, nem posso me ater ao fato de que nunca o Palácio do Planalto foi ocupado por um mandatário ou mandatária negro ou negra, o que parece ainda distante, porque a porcentagem é nula: 0%. Mas podemos usar como retrato dessa sub-representação as imagens que registraram as equipes ministeriais dos presidentes da Nova República, de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro, passando obviamente pelos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff.
Imagens tão embranquecidas que, quando muito, podemos encontrar um ministro negro, ocupante da pasta, vejam só, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
É fato que o Brasil nunca superou seu principal marco histórico, que foi a escravidão negra, extinta há apenas 133 anos. Abandonou à pobreza, à própria sorte e relegou às favelas as 4,8 milhões de vítimas do brutal tráfico transatlântico que adotou, dando consequência definitiva aos quase quatro séculos de açoites.
Assim, sem tratar as feridas da chaga histórica que nutriu, deixou para si próprio o legado estruturante do racismo que, desde então, impede negros de ocuparem espaços sociais de prestígio, de vantagem econômica ou qualquer ordem de poder.
A política institucional, espaço capaz de manipular a tessitura social e provocar alterações sistêmicas, talvez seja o exemplo mais marcante desse resultado devastador da nossa gênese racializada enquanto sociedade e Estado. E é sobre ela que deve se concentrar parte considerável dos esforços daqueles que acreditam que demolir as diferenças entre brancos e negros é um caminho incontornável para o avanço civilizatório do Brasil enquanto nação.
Movimentos em torno de candidaturas negras para as próximas eleições, que vão escolher governadores, deputados (estaduais, distritais e federais), senadores e o Presidente da República, ajudam a avançarmos nesse debate.
O mesmo aplica-se para negociações já empreendidas antecipadamente sobre ocupação do primeiro, segundo e terceiro escalões do próximo governo do Brasil, provavelmente a ser ocupado pelo presidente Lula – alguém que, em que pesem os avanços promovidos em seus governos sobre a questão racial, possui uma dívida histórica a pagar com os movimentos sociais negros, por ter relegado ao “gueto” da Seppir (o ministério da igualdade racial) a representação de negritude da sua coalizão política. Uma opção que hoje podemos classificar como erro histórico, responsável por reforçar o fenômeno do “negro único” e por limitar os conhecimentos da intelectualidade negra a uma só temática. Racismo por omissão, para usar o termo cunhado pela petista e feminista Lélia Gonzalez.
O próximo ciclo político, contudo, deverá ser diferente. O mundo mudou.
Fomos testemunhas oculares da história ao vermos o assassinato de George Floyd, os protestos do Black Lives Matter que pararam os Estados Unidos da América e ocuparam as ruas estadunidenses em plena pandemia da Covid-19 e que foram responsáveis decisivamente pela não reeleição de Donald Trump.
Presenciamos o caso Alberto Freitas no Carrefour (que deu origem a esse espaço de reflexão e à Coordenação de Direitos Humanos do IREE, além de ampliar vetiginosamente os debates sobre inclusão e desenvolvimento induzidos pelo setor privado) e vimos a Constituinte do Chile privilegiar mulheres, negros e indígenas.
Vimos também com nossos próprios olhos a composição do governo Joe Biden seguir o mesmo caminho, incluindo mulheres, negros e negras e imigrantes, numa resposta histórica do democrata à base social que o levou à Casa Branca. E veremos no Brasil, no próximo dia 20 de novembro, a maior manifestação da Consciência Negra da história da República, protagonizando o ‘Fora Bolsonaro’.
As cartas estão sobre a mesa e, seja lá quem vencer a eleição, da direita social-democrata ao lulopetismo, terá que respeitar a força social dessa população e reverter a lógica de sub-representação racial dominante até aqui na política.
Para além da Seppir e da Fundação Palmares, instrumentos institucionais importantes que foram alvo de destruição do bolsonarismo e que precisarão ser recompostos, serão inevitáveis as nomeações de técnicos, políticos e intelectuais negros e negras para outros cargos de primeiro escalão do governo federal. Educação, Justiça, Economia, Cultura, Integração Nacional, Desenvolvimento Social, todos esses e ainda outros são espaços em disputa e com nomes negros colocados como os melhores e mais qualificados em cada uma dessas áreas.
O mundo mudou.
Oxalá as fotos das equipes ministeriais também mudem.
Que fiquem mais pretas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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