Reinventando um país com uma constelação de gestos – IREE

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Reinventando um país com uma constelação de gestos

Bianca Coutinho Dias

Bianca Coutinho Dias
Psicanalista e crítica de arte



Se a modernidade foi a condição para a emergência histórica da psicanálise, o discurso freudiano empreendeu uma crítica – ao mesmo tempo teórica, ética e política – que revelou os impasses do moderno e o descentramento do sujeito.

Na extraordinária exposição “Raio-que-o-parta: ficções do moderno no Brasil”, em cartaz no Sesc 24 de Maio em São Paulo, a noção de modernidade é repensada e tensionada, a partir da ampliação do olhar. Um mosaico de múltiplas culturas, sotaques e narrativas – composto por 600 obras de 200 artistas – com pinturas, esculturas, documentos, fotografias, cinema, revistas e outras ações, em um caleidoscópio de gestos singulares que não recorre a qualquer maniqueísmo ou simplificação de pensamento, desafiando a versão canônica da modernidade e trazendo à tona distintas ficções que forjaram a ideia de um país.

Retomar a grandeza e, sobretudo, a riqueza da precariedade: a pluralidade cultural se revela com uma das mais sérias pesquisas a respeito das infindáveis discussões sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 e suas derivações. O impasse que se aprofunda 100 anos depois é tratado com complexidade em uma exposição que se move no frágil limite entre o excesso e a escassez, capturando a singularidade da invenção e suas ambiguidades. Estão presentes a seca, a aridez, a pulsação de vida, o espaço aberto à imigração, a mistura delirante, plural e nômade de que somos feitos. “Raio que o parta”, para além de uma crítica pasteurizada, nos conduz aos confins de nossas origens revelando a arte em sua nascente, com toda a potência de acolher tanto a ternura do popular quanto o tremor do experimental.

Da provocação ao lirismo esparramados por todos os objetos, encontramos a trilha que se revela desde o título da exposição: “Raio que o parta” é um lugar, uma convocação, um destino e, também, um estilo inspirado de antigas casas de Belém do Pará, com fachadas elaboradas pela justaposição de azulejos quebrados que formam desenhos coloridos. O estilo arquitetônico e estético se popularizou e se espalhou pelos bairros da cidade, como um gesto que persegue a beleza.

Encontro na exposição a mesma crítica empreendida por Freud, pois pensar o país de forma diversa e complexa é pensar a singularidade, o descentramento. É analisar os diversos contextos em que se erigiu a modernização, é expor as feridas e fraturas, as brechas para muitas linguagens e formas de criar. Não por acaso, a psicanálise é também filha da modernidade e se estabeleceu como práxis de um não-saber ou de um saber construído a partir do insondável e das ambiguidades que nos constituem. O sujeito da psicanálise é também revelado na exposição: é muitos, com contradições e potências que compõem solo comum em uma constelação de gestos, tanto íntimos quanto políticos, em quatro núcleos expositivos.

O núcleo “Deixa falar” – com obras de Mestre Zumba, Agnaldo Manoel dos Santos e Wilson Tibério, além de Carybé, Anita Malfatti, Haruo Ohara e outros – desafia, a partir do dissenso, uma ideia monolítica de identidade nacional. O segundo núcleo, “Centauros Iconoclastas”, fundado no Recife na década de 1920, revela o interesse por formas de existência que ultrapassam o humano e invoca uma subversão das ordens e hierarquias, demonstrado por múltiplas possibilidades de corpos, de humanidades e animalidades, de mitos e metamorfoses, em diálogo direto com a psicanálise, através de artistas que buscam a possibilidade viva do delírio e a radicalidade da existência. Há obras de artistas como Pagu, Lidia Baís, Aurora Cursino dos Santos, Tarsila do Amaral e Joaquim do Rego Monteiro.

No núcleo “Eu vou reunir, eu vou guarnecer”, a festa e a alegria são invocadas por meio de brincadeiras e cordões populares, pelo informal e espontâneo que comparecem nas obras de Djanira, Franklin Cascaes, Rubem Valentim, Lasar Segall e outros. Em “Vândalos do Apocalipse”, os parâmetros do progresso e desenvolvimento são criticados e se revelam também as mazelas dos abismos sociais em obras de José Antonio da Silva, Hildegrand Rosenthal e Alice Brill, dentre outros nomes nacionais.

Se em “Raio que o parta” encontramos um diálogo pulsante com a psicanálise, devemos lembrar que a construção de uma história é também uma política de transmissão e, como ressalta Jacques Lacan “a investigação freudiana fez entrar o mundo inteiro em nós, recolocou-o definitivamente em seu lugar, ou seja, em nosso corpo e não alhures”.

O debate aberto pelas ficções do moderno traz celebrações, mas faz lembrar a conhecida frase de Claude Lévi-Strauss, cantada por Caetano Veloso: aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína. Das muitas narrativas, tensionamentos e encontros, nos resta recolher os cacos e forjar a nossa festa, recriar uma língua, reinventar um país e tomar nas mãos aquilo que é radicalmente nosso.

NOTA
A curadoria de RAIO-QUE-O-PARTA: FICÇÕES DO MODERNO NO BRASIL é de Aldrin Figueiredo, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca, com curadoria geral de Raphael Fonseca e consultoria de Fernanda Pitta. A exposição permanece em cartaz no Sesc 24 de Maio até 07/08/2022.

 



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Bianca Coutinho Dias

É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).

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