Brasil, meu nego, deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
(Estação Primeira de Mangueira – 2019)
Estão em cartaz, na cidade de São Paulo, mostras importantes para o adensamento de questões fundamentais do Brasil, desde a ideia de identidade e de como ela é forjada, passando pela formação cultural e por um campo de lutas e relações de poder que se revelam na disputa de narrativas que se dá no universo das artes plásticas. Percebe-se, nessas mostras, uma dimensão multidisciplinar que não visa o consenso e a indiferenciação, mas a sustentação da alteridade.
No Sesc Belenzinho acontece “Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro”, a mais abrangente exposição de artes visuais já realizada no país, dedicada exclusivamente à produção de artistas negros. A centralidade do pensamento negro no campo das artes brasileiras, em diferentes tempos e lugares, é uma das principais premissas que guiam o processo curatorial da mostra, que enfrenta o problema da história hegemônica e retoma a produção de um futuro, encarando a memória como desafios éticos e políticos, entrecruzando diferentes campos do saber.
É uma exposição emocionante, com trabalhos em diversas linguagens artísticas – pintura, fotografia, escultura, instalações e videoinstalações – produzidos por 240 artistas, homens e mulheres cis e trans, de todos os estados do Brasil. Uma montagem histórica que, na pluralidade das obras, visa embaralhar o campo pronto das representações coletivas e colocar as coisas aceitas até então em um novo patamar de tensão e disputa.
Há trabalhos de épocas e aspectos formais muito distintos, e também uma pulsação ética que revela os complexos jogos de força que excluíram a produção de artistas negros da história da arte canônica. Em cada poética que se revela ali, está presente a força dos enfrentamentos que altera tudo.
É um olhar sobre a produção artística afro-brasileira que desconstrói e subverte as persistentes hierarquizações culturais, sustentando uma espécie de interrogação fundamental: que relações de poder fizeram com que algumas representações, e não outras, adquirissem consistência no campo social?
A proposta rompe com divisões como cronologia, estilo ou linguagem e trabalha com a ideia de constelações: encontros, aproximações e distanciamentos entre diferentes proposições, que expõem suas particularidades e conexões. O cânone foi cúmplice de situações que estruturaram o racismo e essa belíssima e ampla exposição revela uma impressionante diversidade de produção, apresentando um conjunto de obras absolutamente sensível com invenções e práticas de si da população negra de diversas localidades, como cidades do interior e comunidades quilombolas.
Na Pina Contemporânea acontece “Revoada”, exposição do artista Antônio Obá, que questiona questões da origem e da identidade pela via da fabulação. Há história, vestígio e trilha nas invenções e ficções que, através de pinturas epifânicas, fazem pulsar um inventário de silêncios. O artista olha para sua trajetória e rememora acontecimentos históricos, dando-lhes novos significados. Tudo se singulariza, se diferencia e resiste às coerções imediatas. Tudo é mistério e alumbramento, e surpreende em uma aposta que mira em outros campos possíveis.
Em “Revoada” há um conjunto de pinturas com temáticas voltadas para a infância, e uma instalação em que a dimensão do gesto está presente: 200 pares de mãos de crianças, moldadas em resina em oficinas oferecidas pelo artista na Ocupação 9 de Julho do Movimento Sem Teto do Centro, em duas escolas particulares e no ateliê da Pina Contemporânea.
A curadoria sensível sustenta uma fineza, a possibilidade do presente como aquele revelado no “Ensaio sobre a dádiva”, do sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss, para quem a memória das coisas está viva na memória das pessoas e é preciso que gestos singulares possam reconectar essas memórias. Para Antonio Obá, a infância é capaz de transformar o mundo.
Essa ética fundamental em seu trabalho parte de sua história como professor. As crianças são a metáfora de uma aposta em vias de nascer, em contraponto a modos de existência hegemônicos, que cria um ethos e uma espessura que abrem novas frestas. Através de áudios, o artista nos guia pela exposição com sua própria voz, nos convocando a participar da construção de outro mundo possível.
“Ensaios para o museu das origens” é também uma convocação. Fruto de uma parceria entre o Itaú Cultural e o Instituto Tomie Ohtake, a mostra – inspirada no projeto de Museu das Origens, do crítico de arte Mário Pedrosa – acontece simultaneamente e de forma complementar nos espaços das duas instituições.
Após um incêndio que destruiu 90% do acervo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ocorrido em 1978, Mário Pedrosa propôs um novo caminho para a reconstrução do museu, repensando e reivindicando outras noções de arte: a criação de cinco museus distintos que, apesar de organizados de forma independente, seriam organicamente articulados.
Na proposta os museus seriam: o Museu de Arte Moderna, o Museu de Arte Virgem (formado a partir do Museu de Imagens do Inconsciente), o Museu do Índio, o Museu do Negro e o Museu de Artes Populares. A ideia não se concretizou, mas sua iniciativa encetou um debate sobre as políticas de memória e as formas para preservação e difusão das diferentes matrizes culturais do Brasil.
“Ensaios para o museu das origens” coloca em cena lugares de memória e instituições que abrigam questões incontornáveis e levanta a reflexão sobre a dimensão da memória como pensamento, imaginação e potência criativa, em que a própria ordem disciplinar é posta em questão, sem que a possibilidade viva de novos discursos e práticas de pesquisa, que refletem agudamente sobre o que devemos conservar e interrogar, seja descartada. O que até então estava na periferia do pensamento canônico da arte é conduzido ao centro de irradiação. Destaco a “lucidez embriagada” do artista plástico Ubirajara Ferreira Braga (para citar aqui o psicanalista Hélio Pellegrino) que começou a pintar tardiamente, aos 58 anos, após passar por tratamentos de choque e ser internado como esquizofrênico no Hospital Psiquiátrico do Juquery, em 1959. Suas obras representam quase 30% do acervo do museu Osório Cesar e são a prova viva de que devemos mirar essas outras cartografias que muito nos ensinam sobre o insondável da existência.
Serviço:
- Dos Brasis – Arte e Pensamento Negro – Sesc Belenzinho até 28/01/2024 (a partir de 2024, uma parte da mostra circulará pelo Brasil em espaços do Sesc, no período de 10 anos)
- Revoada – Pina Contemporânea até 18/02/2024
- Ensaios para o museu das origens – Instituto Tomie Ohtake até 28/01/2024
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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