O artigo “Reforma agrária popular para construir soberania alimentar” foi publicado originalmente no Jornal dos Economistas, do CORECON – RJ e SINDECON – RJ.
Por Juliane Furno e João Pedro Stedile*
Em recente relatório apresentado no Fórum Econômico Mundial, produzido pelos principais economistas-chefes de bancos e empresas internacionais, a América Latina ganhou destaque como uma região que amargará, no curto e longo prazo, uma trajetória de inflação elevada; salários reais mais baixos; menor crescimento do produto e insegurança alimentar, eufemismo para esconder a fome que assola milhares de trabalhadores.
A crise de dimensões econômica, ambiental, social e política – em que pese ter dimensão global – logra impactos distintos em diferentes partes do mundo. Aqui na periferia do sistema, as consequências são ainda mais graves, pela subordinação ao domínio do capitalismo dependente e pelo caráter histórico das seculares desigualdades que conformaram as estruturas de centro e periferia.
As economias latino-americanas, pela natureza da sua formação social e econômica, não são apenas periféricas, mas também dependentes, ou seja, têm – em geral – comportamento que reflete o dos países de capitalismo central. Dessa forma, opções de política econômica no campo monetário, nos estímulos fiscais ou mesmo no caráter mais ou menos protecionista das nações desenvolvidas afetam – sobremaneira – o dinamismo das economias latino-americanas.
Os fluxos internacionais de liquidez, a superexploração de nossos trabalhadores (comparados aos salários médios do centro) e as remessas de lucros de uma economia cada vez mais desnacionalizada são impactos externos que afetam cada vez mais as economias periféricas.
A natureza dependente das economias latino-americanas tem sido radicalizada por um processo histórico de desindustrialização e reafirmação de uma pauta agroexportadora como setor dinâmico, especialmente no caso brasileiro. E é aqui que se concentra nossa análise. A perda da participação da indústria no PIB brasileiro e o retorno à reprimarização da pauta de exportação têm contribuído para a maior vulnerabilidade da economia brasileira a choques externos.
O principal deles recaiu sobre a inflação do preço dos alimentos, como consequência da desvalorização cambial, da sobrevalorização dos preços das commodities, da elevada taxa de lucro e da renda da terra nas áreas de commodities agrícolas e do deslocamento da produção de alimentos, e impôs uma elevação da renda da terra também na produção dos alimentos do mercado interno. Esse cenário de inflação de alimentos, somado à queda da renda real dos trabalhadores, traz como consequências a insegurança alimentar de milhões de brasileiros e a retração do mercado interno, afetando toda a cadeia econômica.
Por outro lado, os distintos impactos da crise econômica ensejada pela pandemia da Covid-19, que se somaram a uma situação pregressa de estagnação do crescimento econômico, relegam como herança uma série de características à economia brasileira que vão desaguar no avanço da insegurança alimentar. Baixo crescimento econômico, política fiscal restritiva, desemprego, juros elevados e inflação persistentes sugerem queda da renda real dos trabalhadores, o que compromete sua capacidade de alimentar-se em qualidade e quantidade suficientes, o que configura uma restrição fundamental aos direitos humanos, que é a insegurança alimentar.
Durante o primeiro ano da pandemia, a agropecuária foi o único setor que registrou crescimento. Enquanto a economia brasileira amargou queda de 4% no PIB em 2020, o setor teve crescimento de 1,5%, motivado por safra recorde, ampla liberação de crédito e ganhos em volume e, especialmente, preço dos produtos exportados.
Levando em conta a média dos três primeiros trimestres do ano de 2020, as vagas no setor acumulavam queda de 4,2% na comparação com o mesmo período de 2019. Os rendimentos, em outro sentido, apresentaram tendência de alta, com expansão acumulada de 4,6%. A combinação de menos empregos com rendimentos maiores acusa uma tendência de ainda maior concentração de renda no setor.
Em que pese o bom desempenho do setor do agronegócio, a população brasileira amargou as consequências do retorno do Brasil ao mapa da fome. Não bastassem o elevado desemprego e a consequente queda da renda nominal, os ganhos reais dos trabalhadores foram dirimidos pelos substanciais aumentos nos produtos que fazem parte do cotidiano alimentar dos brasileiros. Desagregando o IPCA do ano, o grupo “alimentação no domicílio” experimentou alta de 18,2%. Os produtos que mais impactaram no resultado foram o óleo de soja (103,79%), o arroz (76,01%), o leite longa vida (26,93%) e as carnes (17,97%).
Os estoques reguladores dos alimentos, em especial do arroz, que poderiam ter sido colocados no mercado interno para frear a tendência altista nos preços, foram drasticamente reduzidos. Ou seja, houve esvaziamento completo de uma política pública fundamental para coordenar ações de combate à insegurança alimentar.
Além da redução dos estoques reguladores de alimentos, o agronegócio tem avançado na cultura dos gêneros de exportação sob as terras brasileiras, enquanto há concomitante redução da área para alimentos. Ainda no caso do arroz, houve uma queda na área plantada e, portanto, na produção em 12,1% em 2021 em relação ao ano anterior.
Nas últimas três décadas, enfrentaram-se no campo brasileiro três modelos de domínio da agricultura e dos bens da natureza. O primeiro é o latifúndio, não apenas como grande propriedade, mas como modelo predador que só acumula capital e riqueza se apropriando de forma privada de bens da natureza, como terras públicas, florestas, madeira, água, minérios e biodiversidade, e ao colocá-los no mercado, obtém uma renda extraordinária e fantástica, que nenhum outro setor da economia tem. Com isso, acumulam, mas não produzem nada para sociedade.
O segundo modelo é o agronegócio, que representa a aliança de grandes proprietários de terra com as empresas transnacionais que controlam os insumos agrícolas e o comércio mundial e com o capital financeiro. Adotam produção em escala, alta produtividade, sementes transgênicas e agroquímicos e agrotóxicos, totalmente dependentes de importações. Esse setor produz commodities de exportação: acumulam riqueza, mas não geram emprego, não distribuem renda e ainda destroem o meio ambiente e a natureza com seus agrotóxicos. Sua riqueza é acumulada por 55 grandes empresas, por alguns milhares de fazendeiros e não desenvolve a economia local. O agronegócio, cantado em verso e prosa todas as noites pela rede Globo, enfrenta uma contradição: ele não é sustentável para o meio ambiente e não resolve os problemas sociais. Ao contrário, agrava-os ainda mais.
O terceiro modelo é o da agricultura familiar, que se baseia no trabalho familiar, na produção de alimentos para o mercado interno e ainda atende as matérias-primas que a agroindústria de alimentos precisa.
Esses modelos se enfrentam tacitamente. E em cada período os governantes representam essas ou aquelas propostas. Desde o golpe contra a presidenta Dilma, o modelo do latifúndio chegou ao governo, recebendo todas as benesses e incentivos. E o modelo de agricultura familiar passou a ser atacado, interrompendo várias políticas públicas de apoio a ele, como o PAA (programa de compra antecipada de alimentos), o PNAE (da prioridade para agricultura familiar na merenda escolar), na assistência técnica e pesquisa.
O resultado está aí, na realidade e nas estatísticas. Concentração, centralização e desnacionalização do agro; de outro lado, ao povo, sobraram desemprego, pobreza, fome e destruição do meio ambiente.
A saída para o atual cenário passa por uma reorientação da política econômica, em termos gerais, e pela prioridade ao modelo da agricultura familiar para produzirmos alimentos saudáveis para o mercado interno. E aí a retomada da reforma agrária buscaria potencializar os milhões de trabalhadores sem-terra para que se transformassem em produtores de alimentos, garantindo trabalho e renda, que por sua vez provocariam o maior crescimento da indústria nacional.
Somente a agricultura familiar é capaz de garantir comida na mesa no povo brasileiro, uma vez que ela produz os alimentos essenciais à alimentação.
Para tanto são necessárias políticas públicas que busquem a desapropriação do latifúndio improdutivo, o incentivo à produção agroecológica, a recuperação do PAA, do PNAE, políticas de produção de bioinsumos e o incentivo para a instalação de agroindústrias cooperativas e para o uso de energias renováveis, que em seu conjunto alimentariam a reindustrialização do país em novas bases.
Mas essa nova política depende de um projeto mais amplo de desenvolvimento nacional do Brasil, que passa pela derrota eleitoral do atual governo neofascista e ultraneoliberal.
* João Pedro Stedile é economista, autor de livros e membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Juliane Furno
É Economista-Chefe do IREE. Cientista social, mestre e doutora em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp. Especialista em mercado de trabalho, desenvolvimento econômico e política industrial no setor de Petróleo e Gás.
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