Escrevo mobilizada pela travessia, pessoal e coletiva, de uma crise sanitária de proporções inimagináveis que promove cortes, antes e depois. Escrevo, também, no dia em que a cidade de São Paulo não registrou nenhuma morte relacionada à pandemia.
É impossível inscrever e historicizar cada existência a partir de números. A contagem de mortos será sempre imprecisa. Cada corpo a menos é uma queda na ideia de partilha, uma fratura na comunidade. Os impactos da desastrosa condução da política pública pedem coragem para transformar a devastação em uma política do luto que permita-nos confrontar com a transitoriedade da vida, reconhecer a passagem do tempo e, paradoxalmente, adensar a dimensão da experiência.
É um longo trabalho de luto e elaboração. Diante do atravessamento radical de corpos pela ideia de contaminação, nosso narcisismo foi ferido de maneira violenta. Defrontados com imagens de desespero e centenas de covas apressadamente abertas, tivemos certezas estraçalhadas. Desalojados e desabrigados, fomos atingidos por uma experiência-limite que nos arremessou ao território da precariedade. Na indeterminação dos dias, constatamos de forma crua que qualquer história pessoal é também a de toda a humanidade.
Freud afirma que o luto é um processo que requer um verdadeiro trabalho psíquico de perda, a que chama de “trabalho do luto”, tarefa ética a que somos convocados de maneira incontornável. A psicanálise ensina que o “eu” é constituído de efeitos abismais e prismático de perdas. Como repensar, agora, o trabalho do luto? Quais os cortes decisivos? E, a quem sempre esteve, de antemão, em um lugar de invisibilidade, como será realizar o trabalho de luto?
A vulnerabilidade de quem não pôde se resguardar em casa me fez repensar sobre a história dos corpos, sobre a queda que antecede a de muitos corpos. Ao pensar a ideia de luto coletivo me vi confrontada com minhas certezas. Refleti sobre algo que parecia ser apenas sutileza: a cor da minha pele – uma sutileza brutal que, até então, me preservara de uma série de questões, inclusive no contexto da pandemia.
A leitura de Achille Mbembe clareou algo na minha inquietação. Meu corpo aninhado na reclusão reconheceu algo incontornável, apontado pelo filósofo: os corpos se distribuem desigualmente não somente no espaço físico, mas também em termos do reconhecimento de direitos e de capacidades. Há corpos e existências contornadas por algum conforto material e seguranças afetiva e psíquica e há corpos atravessados de forma permanente pelo medo e precariedade. A violência colonial também situa suas margens na situação aterradora da pandemia: a necropolítica, o conceito elucidado por Mbembe, encontrou vias diretas para seu projeto destrutivo. A constatação é fácil, basta sustentar uma pergunta incômoda: quais corpos não puderam parar e tiveram que funcionar para que outros, privilegiados, pudessem se recolher na segurança domiciliar? A interrogação demonstra que tudo se conjuga como um conjunto de políticas de controle social através da morte: é a política da morte, adaptada pelo Estado. E ela não é pontual e nem é exceção: é a regra.
Da reclusão angustiada, permeada por algumas perdas e ameaças, pude tatear, através da arte, algumas experiências de luto e circunscrever um novo lugar e uma nova perplexidade. Nesse processo encontrei Aline Motta, cujo trabalho busca a escrita, de seu corpo e de muitos que estiveram à margem de uma narrativa hegemônica. Em “Filha natural”, a artista cria uma ambiguidade essencial e segue por um rigor estético e poético, em que tudo é desnaturalizado e se encaminha para um assombro novo: se a filiação natural sempre foi um direito dos brancos, para um negro nem sempre foi assim. Perseguindo sua origem nas fazendas de café, nos quilombos ou nas histórias vivas nas águas que atravessam sua existência, Aline Motta nos conduz por uma busca incisiva e cortante.
O estatuto inacabado da arte é a força e o tremor que transformam a busca em algo que leva o eu ao outro. Aline Motta escuta a ancestralidade que, inscrita no corpo, rege sua vida, toca suas feridas e nelas acende a inscrição de uma origem que lhe foi negada, por conta da herança colonial que deixou marcas profundas. A própria questão do legado e da transmissão sempre foi algo que os brancos tomaram para si. É preciso buscar, então, com a força do trabalho, o lugar de enunciação que foi sequestrado pela história. É preciso convocar outra história, em que se possa ser autora da vida pessoal e dos antepassados.
A obra “Filha natural” faz repensar a escrita de uma linhagem em que a escravidão atravessa corpos com incidências brutais. Desde sempre, o lugar de enunciação é roubado dos negros. Aline retoma a palavra, desloca o silêncio para um lugar onde o biográfico escreve o comum. Na fazenda – origem de tudo – ela colhe as flores que o homem branco não viu na senzala. A partir de documentos, imagens e fotos, reescreve sua história e resgata a ancestralidade no seu sentido mais agudo. Com a brasa que faz arder o singular, reencena a vida e a força de um legado silenciado. Toma nas mãos a vida de tantas mulheres e deixa escorrer o tempo e as águas, dissolve a dor sem escamotear o sofrimento que há na história, convoca a força dos cantos e da natureza que infringe qualquer naturalidade e o poder convulsivo da transmissão. A potência do insondável escreve o que é impossível ser escrito, reinventa linhagens e restaura destinos, uma espécie de testamento poético que vai aos confins do real, de onde surgem os ecos da herança africana, agora reintroduzida na história. Diante da incontornável brutalidade, Aline Motta escreve um corpo radicalmente seu e toca o outro.
Em “Corpo, fora” Jean-Luc Nancy diz que “o corpo floresce, desabrocha na pele, a pele é sua eclosão, mistério e presença”. No entanto, foi preciso outra pele, que não a minha, para que pudesse me lançar para mais longe de mim, para outros mares, ecos e origens.
O luto é uma ferida aberta, em que algo referente ao ideal do eu é profundamente abalado, e exige tempo para que se possa simbolizar a separação. Mas como fazê-lo quando o corpo está, de antemão, inscrito em um lugar de precariedade tão intensa? É preciso dar lugar a essa perda, bordear o buraco.
São tempos de dor, momento de travessia. E é preciso transformar a noite escura em um rasgo que faça surgir um clarão ou um fresta que possa iluminar. Como um poema de Michaux, temos pressa: “O fabuloso desfilando / o extraordinário, comum / mas a penitência da incerteza permanece / Novas margens desmoronadas / esforços liliputianos / É preciso apressar-se / A História vai fechar-se”.
O sentido que criaremos como comunidade e como país passa incontornavelmente por cada corpo. É preciso que a ferida de cada um faça parte dessa escrita. O caminho simbólico exige que possamos fazer arder e queimar pela sustentação do desejo e não por sua aniquilação. Não por acaso, estão na arte – nos filmes, nas canções, nos livros – as pegadas da partilha decidida de um trabalho de luto que nos convoca eticamente na urgência e na gravidade do que agora se coloca.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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