O livro “Furos no futuro – psicanálise e utopia” traz em sua abertura uma convocação do poeta ucraniano Serhiy Zhadan: “Pegue apenas o que é mais importante. Pegue as cartas. Pegue apenas o que puder carregar”. A partir desse chamado – que é também um poema de guerra – o autor da obra, o psicanalista Edson Luiz André de Sousa, nos conduz por “um cenário apocalíptico onde até mesmo a esperança se perde”. Esse é o cenário destroçado que fica para trás.
Um novo tempo se abriu com a posse do novo presidente. O país se anuncia como um lugar em que é preciso levar o essencial. Impossível não se deixar mobilizar pela esperança e pela ideia esboçada em “Furos no futuro”: “As utopias sempre tiveram uma função de ativar a revolta da imaginação diante de um mundo que insiste sempre em retornar ao mesmo lugar. Elas procuram colocar em cena, mesmo em cenários de desesperança, nosso direito a imaginar outros mundos. É, por esta razão, que o pensamento utópico sempre se revelou como rebelde, próximo a arte e literatura, instrumentos para reagirmos com novas narrativas ao empobrecimento da linguagem que alimenta a alma dos tiranos”.
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Direitos autorais: O equívoco dos jovens Roberto e Erasmo Carlos
Acreditar no futuro me parece um ato utópico fundamental que coloca em cena tanto o reconhecimento da precariedade quanto a possibilidade da fresta por onde a luz possa entrar. Podemos, novamente, apostar em políticas sociais concretas no que diz respeito a questões como habitação, trabalho, educação, assistência médica. Reconhecer a gravidade do estado das coisas e encarar de frente a precariedade pressupõe uma nova coletividade, uma condição de vida partilhada.
Há, portanto, um trabalho de luto, uma travessia ainda por fazer, como nos lembra Judith Butler: “Sem a condição de ser enlutada não há vida, ou melhor dizendo, há algo que está vivo, mas que é diferente de uma vida. A condição de ser enlutado precede e torna possível a apreensão do ser vivo como algo que vive”.
Por quatro anos vivemos uma situação dramática sem que pudéssemos vislumbrar o luto no horizonte. A utopia e o desejo existiram por teimosia e insistência. Agora, finalmente, a necessária reviravolta acontece e podemos voltar a respirar. O que fez tremer nossos contornos de estabilidade emocional retorna agora com uma urgência de ressignificação. Juntos, subimos a rampa com Francisco, Aline, Raoni, Weslley, Murilo, Jucimara, Ivan e Flávio. Juntos demos início ao processo de restauração coletiva. Depois de quebras, rupturas e demolições implacáveis, temos a força utópica condensada em tantos momentos desse ato inaugural. A força de cada gesto, a espessura de cada palavra, a potência da surpresa e do novo deixaram em nós uma marca de dignidade e humanidade.
O momento utópico pede também que sustentemos as perguntas essenciais de Nancy Fraser: “O neoliberalismo está se fragmentando, mas o que surgirá entre seus cacos?”
Fica aqui esta garrafa arremessada ao mar, um documento e o testemunho de uma aposta, o momento de virada em que vemos emergir as diversas vozes e línguas que irrompem como pulsação de vida depois da devastação.
Reescrevamos uma ficção que interrogue sobre o que ainda podemos sonhar, portanto algo muito próximo do que a prática psicanalítica abre como possibilidade ou, no dizer de Edson Luiz André de Sousa: “recortar os mapas que herdamos, lê-los minimamente para poder redesenhá-los”. É uma aposta nos princípios da ética da psicanálise, da arte, da literatura. Uma aposta na reconstrução de um solo comum que, em sua agudeza e complexidade, inclua indígenas, pretos, pobres e todas as vidas que foram inviabilizadas, inclusive aquela representada por Resistência, a cadelinha vira-lata que também subiu a rampa do poder, encarnando as questões urgentes e essenciais que tocam em nossa mais cortante humanidade.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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