Psicologia para governar – IREE

Análises e Editorial

Psicologia para governar

Por Santiago Gómez*

Todo mundo que entra no combate político sabe que é possível fazer a cabeça das pessoas. A política contrata consultorias porque não sabe como a mente funciona, aí aparece o marketing, que é psicologia, e começam medir o comportamento. As forças nacionais e populares na região, em geral, têm problemas com o marketing político por uma questão de classe. E por uma questão de classe, a maioria das pessoas que trabalha em agências nunca militaram. Então você tem de um lado pessoas que sabem de política, do outro lado pessoas que sabem de comunicação, e no meio a questão de classe, sobre a qual ninguém conversa. A classe de pessoas que moram nesse continente é de pessoas colonizadas. Fizeram a cabeça delas. Fizeram as nossas cabeças. Por isso é importante pensar como é que a nossa cabeça está feita.

Nascemos dependentes, com cinco canais abertos captando informação o tempo todo, conhecidos como cinco sentidos. A estimulação simultânea de sentidos estabelece associações. Podemos pensar no exemplo de Pavlov, que tocava o sino, chamava o cachorro e dava carne. Repetiu isso várias vezes, até que em uma bateu o sino, não deu carne, e o cachorro babou como se a carne estivesse presente. O cachorro representa? Não sabemos, mas sabemos que pelo ouvido percebemos repetições de sons, que se relacionam com mais um sentido que está sendo estimulado. Pensemos na primeira palavra, em geral, que as pessoas falam: mãe. A associação do som mãe, na presença da mãe, gera associação. O som mãe, na ausência da mãe, gera comportamentos na criatura. A repetição da associação fixa sentido. Em qual sentido o pensamento vai após a criança ouvir mãe?

A língua é uma ferramenta pela qual incorporamos o ordenamento social, do local pelo qual ingressamos no mundo. Ninguém escolheu por onde chegar, nem vir. Mas a maioria ingressa num local onde a sociedade se organiza na base familiar. Com a incorporação da palavra mãe, a gente incorpora a hierarquização social. O fenômeno de alienação se produz pela linguagem. O que quer dizer alienação? Se colocar no lugar que o outro te deu. Faz parte. Também é possível sair. Com a incorporação dos pronomes possessivos, “meu”, “minha”, incorporamos uma organização social baseada na propriedade privada. Existe o próprio e o dos outros. Existe o nosso e o deles. E sempre existiram aquelas pessoas, sem distinção de classe, que preferem se apropriar do esforço alheio.

Hierarquização social

A principal hierarquização social não é a da família, é a da raça. Crescemos em territórios que estão divididos por cor, espaços divididos por cor, e nunca são brancos os pobres. Isso só acontece nos Estados Unidos. As línguas, culturas, cosmologias, crenças, religiões, dos povos originários, das nações africanas sequestradas, desalojadas e escravizadas, foram negadas, foram colocadas como inferiores, primitivas. Com a colonização de América ou Abya Yala pela força, pela violência, com genocídios, impuseram as formas deles. Isso é um império. Impera uma forma. Uma estética. Um ideal. O deles é o bom, o nosso é o ruim. O deles é verdadeiro, o nosso é falso. O deles é o ideal, o nosso é uma bosta. O ideal deles é o ideal, que aqui não dá certo porque o problema somos nós. Numa parede de São Paulo li: Os sonhos de quem estamos sonhando?

A pessoa não precisa ser psicóloga para saber que a distância entre quem você quer ser e quem você é gera uma emoção, pode chamar ela como quiser. Agora, esse ideal é nosso? Esse ideal é realizável? Eu entendo nossos mestiços do século XIX, que fizeram as revoluções anti-imperialistas na América do Sul, que viram um progresso na República Francesa, diante o modelo monárquico. Como é que alguém vai governar, pela família da qual faz parte? Será que alguma coisa dessas ainda estamos vivendo? Será que a República Francesa deu certo em lugar algum? França, não parece. África? Fraternidade, solidariedade e igualdade dos franceses na África, nunca ninguém viu. Nas colônias na América do Sul?

Crescemos ouvindo que o país não dá certo porque o problema é a gente. A gente pode encontrar o mesmo discurso em qualquer jornal do século XIX na América Latina. A cabeça do colonizado é feita desse jeito: o melhor está num outro lugar. Nunca o melhor pode estar onde você está, porque olha do lado, você está rodeado de primitivos, de deficientes, depravados, bárbaros. Isso escreviam no século dezenove os profissionais liberais que prestavam serviço para a Casa Grande, e o mesmo repete um monte de pessoas que fazem parte da academia no século XXI? É preciso lembrar que dentro das universidades teve quem resistiu às cotas. Qual país não tem acadêmicos jogando a culpa na cultura popular pelas desgraças do país? O que a gente precisa é convidar as pessoas para pensar onde é que deu certo o modelo colonial. Qual país da África? Qual país da América? Nos países deles esse modelo acaba com a pobreza?

A cabeça colonizada

Toda pessoa que quiser governar, e fizer parte das forças nacionais e populares, deveria ler Os condenados da terra, de Frantz Fanon, e Psicologia das massas e análise do eu, de Sigmund Freud. O primeiro para entender como se faz a cabeça do colonizado, quais são as consequências, e como o discurso colonial fragiliza nossa força moral, porque acabava com a autoestima. Lula reconheceu a importância da força moral, desde o início, questionando o complexo de vira-lata. E trata-se disso mesmo.

O sentimento de que ser negro, originário ou misturado é ruim, porque o certo é o sangue puro. Pele branca. A base do racismo. Em Cartas de un porteño, de Juan María Gutiérrez, uma dessas personagens do século XIX, que eram advogados, jornalistas, escritores, políticos, em 1873, ele escreveu sobre o padecimento dos “criollos” pelos pais espanhóis. É só ir no sul do Brasil e encontrar pessoas se chamando de italianas, ou alemãs, sem nunca ter conhecido um familiar nascido na Europa. A questão é se diferenciar do outro, por desejar ficar o mais próximo do ideal. No Rio Grande do Sul ouvi umas pouquíssimas pessoas dizerem que elas não eram brasileiras, eram gaúchas. Para pensar as consequências psicológicas de ser filhos de imigrantes, recomendo Los contrabandistas de la memoria, de Jaques Hassoun, psicoanalista francês, filho de egípcios.

Considero que toda pessoa que milita deveria ler o livro do Freud para entender o fenômeno da liderança. Quando na Europa começaram as revoltas e revoluções contra a burguesia, os intelectuais das áreas sociais começaram a pensar o fenômeno da massa. Como era possível que alguém conseguisse mobilizar tantas pessoas? Animalizaram as pessoas: pensaram a massa como rebanho. Para o cristianismo isso é normal. O pastor e o rebanho. Mas a Igreja também tem esse poder.

Na real, quem dá esse poder é a palavra. O que a pessoa fala. As pessoas que escutam reconhecem pedaços das suas histórias na fala, acham que coisas da sua vida estão presentes no que essa pessoa diz, pelo que consideram que essa pessoa representa. Porque uma coisa própria está presente nela. “Falou aquilo que eu penso”, “Eu também senti aquilo”, “Eu também já passei por isso”. Não há como negar que, fazendo parte da massa, a gente faz coisas que individualmente não faz. Mas o fenômeno é o da liderança, a prova é que surgem de cinquenta em cinquenta anos, quem sabe uma vez no século.

Força moral e Ideal

O mais importante de uma força política nacional e popular é sua força moral. Sun Tzu, em A arte da guerra, diz que antes de ir para a guerra você tem que saber o tamanho da força moral do general que vai enfrentar. Quantos o acompanham? Quantos respondem quando ele chama para o combate? Acabar com a moral do general inimigo é um jeito de vencer, sem ter que ir para o confronto aberto. A guerra jurídica, o lawfare, trata disso. Mas como é que acabam com a moral? Com um Ideal externo como unidade de medida. Qual é o ideal que eles utilizam? O da República grega. Modelo criado na base de uma sociedade escravocrata. Como escreveu Lima Barreto, em Reflexões e Contradições à Margem de um Livro, “mesmo o virtuoso Sócrates, mesmo o quase divino Platão e o conciso Aristóteles reconheciam a sua legalidade” [da escravidão].

Então a gente cresce em sociedades com esse ideal de República, onde o Bem comum estaria acima de tudo. Onde seria pelo Bem comum que a pessoa entra na política. E, dentro da política, a pessoa teria que colocar o interesse coletivo acima do interesse individual. E o valor da democracia seria a pluralidade, lembremos que é um sistema que nasce com excluídos, e o melhor seria um monte de representações no Congresso, uma ideal meio arco-íris do Parlamento, uma paleta de cores. Na real, a cor é sempre a mesma, o que muda é o nome: a bancada da bala, a bancada religiosa, a bancada do agronegócio, a narco-bancada. A América Latina toda tem o mesmo problema. A África também. Isso acontece nos países colonizados.

O envolvimento de política e dinheiro sempre é um problema. Em teoria um político não deveria tocar dinheiro, porque em teoria o político só teria que trabalhar com recursos públicos e em recursos públicos ele não pode nem encostar, só receber o salário. Agora, ninguém quer conversar sobre a necessidade do dinheiro para fazer política. Porque para ganhar uma eleição é preciso fazer campanha, e campanha custa dinheiro. Esse dinheiro sai de onde? É preciso lembrar que a repetição de uma associação fixa sentido, e a ideia de que política e dinheiro devem ir por caminhos separados tem muita força, há muitos séculos que se fala disso.

Infelizmente, houve motivos para o Partido dos Trabalhadores perder força moral. É mentira que o apartamento era do Lula, mas não é mentira que se cometeram crimes. Começaram o ataque contra José Dirceu, garantindo que ele não seria a continuação do Lula. Tiraram ele do jogo eleitoral. Quando os próprios eleitores do PT começaram a se decepcionar com o partido, foram além, tiraram a Dilma. E continuaram avançando até prender Lula. Mas como dizem os próprios Manuais de Operações Psicológicas da OTAN e a NSA, vazados pelo ex-agente de inteligência Edward Snowden, não é bom fazer campanhas psicológicas com base em uma mentira, porque no final acaba-se sabendo a verdade e o plano fracassa. O apartamento não era do Lula, o juiz era parcial, Lula foi liberado e virou presidente.

Conhecer nossa história e cultura

No livro Psychologial Operations. Principles and Case Studies (Operações Psicológicas. Princípios e Estudos de Casos), o coronel da Força Aérea dos Estados Unidos Benjamin F. Findley compara as campanhas de marketing com as operações psicológicas. Nas duas o objetivo é condicionar um comportamento, no sentido do interesse de quem faz a campanha ou a operação. Ele considera que é fundamental entender os procedimentos de persuasão das campanhas de marketing para aplicar nas operações psicológicas. O objetivo é condicionar uma conduta. Uma coisa que todo mundo sabe é que as emoções condicionam nosso comportamento. Então, gerar emoções é um jeito de condicionar condutas, escolhas.

Desde criança sabemos que o medo condiciona nosso comportamento. Sabemos que sons ou barulhos produzem medo. Esse foi o grande poder do rádio na guerra: operar sobre as emoções, para levantar a moral da tropa própria, ou fragilizar a moral do inimigo. Sun Tzu ensina que é bom furar a linha inimiga, e ter alguém do outro lado espalhando que vão perder, ou desmoralizando o general que chefia eles. Uma tropa com a moral baixa não vence. A pessoa precisa acreditar para ir para a luta. Uma palavra pode mudar a moral de uma pessoa. Napoleão Bonaparte escreveu “em toda batalha ocorre um momento, no qual os mais corajosos soldados, os que mais esforços têm feito, sentem-se dispostos para correr. Esse medo vem da falta de confiança na sua coragem; não é preciso mais que a ocasião mais insignificante, qualquer desculpa, para lhes devolver essa confiança; a arte magna consiste em fazê-la renascer”.

Napoleão também escreveu que “a sorte de uma batalha depende de um instante, um pensamento”. Então é fundamental entender como nosso pensamento está estruturado ou organizado. Sabemos que a cabeça da nossa população foi feita pelos colonizadores, isso quer dizer que a maioria acha que o dos outros é melhor que o dele, ou o dela. Joga a culpa nos que tem mais perto pelas condições nas quais vive. A primeira coisa em que pensa a maioria, quando escuta a palavra política, é corrupção. E essa associação também é colonial. Começaram os ingleses com os ibéricos. Depois os estrangeiros contra as nossas lideranças populares, chamadas de caudilhos, ou criminosos, porque os nossos Estados taxam o que eles compram. No momento que América Latina e o mundo estão vivendo, onde está se desenvolvendo uma confrontação aberta entre setores conservadores, aliados com corporações transnacionais financeiras, e as forças nacionais e populares, é preciso colocar um ponto de acordo para chamar à discussão: o papel do Estado.

Sabemos que muitas pessoas têm sido usadas como massa de manobra pela supremacismo branco de extrema-direita. A América Latina sabe que os ricos nunca se interessaram na inteligência de quem incorporavam na linha do front para defender seus interesses. Ele não está nem aí se preto morre vestido de farda para garantir que a cocaína chegue até a Faria Lima. Nenhum dos financistas do 8 de janeiro estava junto com os subnormais, que acharam que dariam um golpe com essa quantidade de pessoas e cometeram crimes na frente de câmeras.

Como psicólogo, chamo as força nacionais e populares a prestar ouvidos a todas as pessoas. A direita acaba recrutando pessoas indignadas, dominadas pelas emoções, com limitações cognitivas, com dificuldades para realizar pensamentos complexos, que na esquerda não são acolhidas porque “trata-se da consciência de classe”. Então parecere que quanto mais teoria, melhor… A direita pega todas essas pessoas e manda elas para a linha do front, não está nem aí com o que passará com elas. Fizeram o mesmo em toda guerra. Mandam o fraco para morrer. Ou a polícia não vem do setor mais fraco da sociedade? As pessoas pior alimentadas.

A contradição é uma porta

Como já mencionamos, as emoções condicionam condutas, e a distância entre o ideal e a realidade gera emoções. Então para realizar uma campanha de operações psicológicas, quanto uma campanha de marketing, é preciso fazer uma pesquisa sobre a cultura da população-alvo, conhecer seus valores, quais são seus ideias, para achar o espaço que a contradição gera, essa distância da qual estávamos conversando. A contradição implica uma distância. E a contradição é uma grande porta de ingresso na cabeça das pessoas, que é o campo de batalha das operações psicológicas. Operar na moral da pessoa. Para quem está querendo impor uma vontade, é fundamental manter baixa a moral do povo alvo. Foram mais pessoas pedir Fora Temer do que Fica Dilma.

No caso da Bolívia, não tinham como envolver Evo num caso de corrupção. No Estado plurinacional da Bolívia, entre as nações originárias, primam três leis pré-incaicas: não ser preguiçoso, não mentir e não roubar. “Ama killa, ama llulla, ama shwa”, em quíchua. Como com Lula, atacaram ele com uma mentira. No meio da campanha para ver se Evo conseguia ficar mais um mandato, inventaram que ele teria escondido um filho. A jornalista Gabriela Zapata, com quem Evo teve um relacionamento, mentiu e disse que teve um filho com ele, que ele sabia, e a criança teria falecido. Evo perdeu a eleição por ter sido acusado de mentiroso. Após a eleição Zapata reconheceu que mentiu.

Fizeram Evo perder, mas não conseguiram deter o Movimento Ao Socialismo. Como não tinham prova nenhuma de corrupção contra Evo, tiveram que dar um golpe aberto, e para tirar Evo botaram a polícia e os militares na rua. A moral do MAS é tão forte, que onze meses após o golpe recuperaram o governo. O PT demorou seis anos. É o PT a maior força política de esquerda da América Latina, como repete Lula?

Fortalecer a moral falando verdade

Em agosto de 2013, Lula fechou a série de plenários do PT, que se realizaram entre abril e junho, nas vinte macro regiões de São Paulo, e fez um discurso tentando levantar a moral da militância. Lula começou a fala referindo-se às operações psicológicas da época sobre a saúde dele. “Não vou morrer tão cedo como alguns querem”, disse.

Lula também desmontou outra mentira da mídia, que dizia que esse dia ele lançaria a candidatura do Alexandre Padilha. “Eu vim aqui, só para provar que ninguém precisa acreditar em tudo que a imprensa diz, porque nesse caso mentiram mais uma vez”, disse o então ex-presidente. E Lula destacou como o medo tinha invadido a tropa própria. Lula falou de força moral direto e disse: “a classe política precisa recuperar o orgulho que vocês perderam, porque eu nunca vi segmento da sociedade nenhum ficar calado, todo o santo dia, enquanto qualquer ladrão chama vocês de ladrão. Qualquer cara com uma cara de 171 diz que todo político é ladrão, e a gente não reage, ficamos quietos. Acho que é hora de agir e mostrar que somos diferentes deles”. Nesse comício ele também chamou todo mundo a vestir vermelho. Na eleição de 2016, muitas candidaturas petistas tiraram a estrela e o vermelho do santinho.

A força moral petista foi abatida. Fizeram coisas que não parecem diferentes do jeito que faziam aqueles que o povo tirou do governo para colocar o PT. Tem filme onde funcionários reconhecem ter misturado as coisas. Quero deixar claro que não tenho um problema moral com as malas, se um militante não ficou rico. Entendo a política como a continuação da guerra por uma outra via. Meu maior respeito para quem colocou sua liberdade em risco para tirar 40 milhões de pessoas da pobreza e colocar 9 milhões de crianças da classe trabalhadora na universidade. O PT não criou o esquema, utilizou um esquema, que nem outros também utilizaram, mas foi o único que tirou o povo da pobreza. É preciso falar sério sobre o financiamento da política, convidar a população a pensar nisso, partindo do Estado. Para uma pessoa ser eleita para presidir o Brasil, tem que fazer parte de um partido, participar de uma eleição, desenhar uma campanha eleitoral, e isso precisa de dinheiro. Quem tem que pagar a conta? Se o Estado estabelece esse procedimento, não é o Estado que tem que financiar os partidos políticos?

Mas só o Estado? A maioria da população não sabe que até a eleição não democrática de 2018, por lei, a política era financiada pelo setor privado. Está errado? Vamos pensar em um empresário que tem uma empreiteira. Para ele, o que é melhor? Um governo que faz obra pública, ou um governo que não? Um governo que constrói moradias para a população, ou um governo que não? Esse empresário não tem direito de doar dinheiro para aquela força política que faz obras de infraestrutura quando está no governo? Essa pessoa teria direito de investir no sistema financeiro, tirando lucro na base da especulação, mas se investir numa força política que gera lucro por produção, seria corrupção? Quem que estaria se corrompendo? Acontece que quando esse empresário ganha uma licitação, os inimigos, que são as empreiteiras estrangeiras, falam de corrupção e de que ganhou a obra porque financiou a campanha. Por que isso consegue penetrar nas pessoas? Pela falta de informação. A maioria não sabe que são poucas as empresas que podem fazer algumas obras de infraestrutura. Odebrecht fazia uma de cada cinco grandes obras na América do Sul. É bom para a região ter uma empresa brasileira fazendo isso. As pessoas que trabalham aí depois fazem turismo nos países vizinhos.

Fortalecer a ideia de Estado

O antipetismo existe, existirá, as forças reacionárias, conservadoras e antipopulares nasceram com as nossas nações. É claro que metade do Brasil não é bolsonarista. Entre quem votou em Bolsonaro tem pessoas que já votaram em Lula. Hoje entrar na discussão PT ou não PT não leva muito longe não. O que é preciso é tirar a discussão desse ping-pong, e colocá-la num marco maior: o Estado deve mediar as relações comerciais, trabalhistas, sim ou não? Na hora de uma pessoa pobre, favelada e desempregada, acordar o salário com o patrão, o melhor é o quê? Que o Estado estabeleça um salário mínimo, ou o patrão ter o direito de especular com a fome da pessoa? Em caso de pandemia, o certo é o quê? Que o Estado entregue vacina, ou que cada um se vire por si? Porque a gente o que vê é que quando é o mercado que regula as relações, a coisa volta para o modelo escravocrata, e isso explica por que era tão barato o espumante Garibaldi ou Salton.

Os governantes desses tempos precisam entender que não é possível ir com respostas para quem não se fez perguntas. Temos uma sociedade urbana, que determina a realidade social nacional, fixada nas redes sociais, hipnotizadas pelas imagens, porque além de falar, a gente também é animal, e fica capturado pelas imagens. Como estão agindo os jornais digitais para ganhar clicks: com interrogantes nas manchetes. “Quem foi que…?”, “Qual é o famoso que…?”, “Qual a cantora que…?”. Os interrogantes geram interesse. Temos uma geração que cresceu com muitos problemas resolvidos, e que nunca pensou nas causas. A gente naturaliza tudo que estava quando chegou, porque natureza é isso, aquilo que estava antes da gente.

Juan Domingo Perón liberou o ingresso nas universidades públicas na Argentina. Se Argentina, com uma população de 46 milhões de pessoas, consegue ter universidades federais sem vestibular, e tem milhares de pessoas brasileiras estudando lá; como é que o Brasil, com a quantidade de grana que tem, não consegue? Considerando os bilhões que o Estado deu para as universidades particulares, quanto a mais teria dado se essas pessoas tivessem estudado em universidades públicas? Perón disse que liberou o ingresso nas universidades, porque ele tinha problemas de pobres para resolver. Disse que nas universidades só tinha filho de rico, pensando problemas de ricos. “Era um crime eu escolher massa cinzenta de um círculo de 100.000 pessoas, quando podia escolher entre 4.000.000 de pessoas”, disse Perón, justificando por quê acabou com o vestibular lá.

A inteligência de uma pessoa pobre e de uma pessoa rica não é igual. Entendo a inteligência como a capacidade de resolver problemas. Pobre consegue resolver problemas que rico nunca teve. Mas colocam ricos para resolver problemas de pobre. Um para ser mais “claros”: colocam brancos para resolver problemas de negros. A administração do Estado requer de conhecimento técnico, e é a classe média e média alta, ou até alta, que consegue as melhores posições, e acaba desenhando e aplicando políticas, para populações com as quais nunca teve contato, nunca andou por uma comunidade. A aplicação de políticas sociais muitas vezes está nas mãos de pessoas que sentem medo quando veem na rua uma pessoa não-branca com roupa esportiva. Por isso, para governar dessa vez, é preciso fazê-lo levando em conta a questão racial. Nada sobre uma população, sem essa população.

No Doutorado Popular sobre Negritude criado por Mano Brown, chamado Mano a Mano, que transmite pelo Spotify, há um episódio com Dilma Rousseff e ela disse que não consegue analisar nada sem considerar a questão racial, colonial. Lula na cadeia, das mãos dos seus dois advogados negros, Luis Rocha e Manoel Caetano, recebeu muita bibliografia sobre a história da escravatura no Brasil. O presidente aproveitou a prisão para estudar. Precisamos militar a leitura cromática da realidade. Olhar a cor das pessoas que estão nos lugares de decisão. Metade da população é negra e mulher, e essa proporcionalidade a gente não acha nas cadeiras mais importantes.

Eu acho que nesses tempos, para governar, é preciso entender a lógica que promove a articulação entre ideias, e entender que as ideias têm as mesmas propriedades que uma força. Movimentam, geram resistências. Mas uma ideia que pode ficar forte na confrontação da sua oposta, pelo espaço curto em que se movimenta a discussão, perde força se é colocada num marco de pensamento maior, como é a ideia de Estado, quem sabe pensar na Constituição. Adotar nas conversas até um posicionamento republicano, “não sou eu quem diz, é a Constituição que estabelece”. Mas sem dúvida nenhuma que para recuperar a força vamos ter que falar verdades, incomodar quem incomodar, porque senão a indignação é capturada pela direita.

Quando vem com o assunto da corrupção, eu sempre dou a mesma resposta: se era para tirar 40 milhões de pessoas da pobreza, eu levava a mala. A minha liberdade não vale mais que a fome de 40 milhões de pessoas. As pessoas que se formaram nas universidades pelo PT, nunca mais passarão fome, ninguém tira o diploma delas. Profissional pode passar necessidade, mas fome não. Vamos pensar numa situação real: é preciso aprovar uma lei que favorece a maioria, mas tem um desses mercenários que o povo coloca no Congresso que fala: cara, estou com dificuldade para pagar a gráfica, você pode imprimir para mim? Você faz o quê? Entre a possibilidade de melhorar a vida da maioria e fazer uma coisa errada, prioriza o interesse coletivo ou o individual?

É preciso conversar sobre o assunto, porque é preciso dinheiro para fazer política. Tem deslocamentos, tem hospedagem, a pessoa come fora o tempo todo, tem materiais para comícios, comida para comícios, aluguel de som, equipe de montagem, e esse dinheiro sai de onde? É preciso reconhecer também, que a gente está lutando contra liberais, e eles sempre querem o mínimo de Estado possível, então eles sempre vão achar que a política gasta muito dinheiro, porque na cabeça deles acham que o Estado faz política com o dinheiro deles, e não reconhecem que eles tiram lucro do território brasileiro. É preciso entender a psicologia do rico. Eles acham que quem está no Estado presta serviços para eles: “eu que pago teu salário”. E para pior, sabemos de centos de pessoas que ocupam bancas no Congresso que prestam serviços para umas poucas famílias.

Para conseguir avançar no sentido da justiça social, da soberania política e da independência econômica, é preciso colocar a realidade sul-americana no contexto colonial. É preciso contar que há cinco séculos interesses estrangeiros tiram lucro dos nossos recursos nacionais, associados com umas poucas famílias proprietárias de grandes extensões de terras, que foram escravocratas, que resistiram às oito horas de trabalho, foram contra salário mínimo, décimo terceiro, férias pagas, plano de saúde, e tudo o que Estado dizer que tem que fazer.

A mesma classe de pessoas, que assim que colocam alguém delas no governo, avançam com voracidade por cima dos direitos trabalhistas: primeiro foi a reforma trabalhista, acabaram com a CLT, voltamos para uma era pré-Getúlio. Têm direito a não pagar o salário mínimo. Permitirem eles escravizarem, e escravizaram. Aí é onde coincide o interesse do capital financeiro transnacional e essas poucas famílias: os dois querem a mínima intervenção do Estado, não querem pagar direitos de exportação, que eles chamam de impostos; e o estrangeiro é contra taxas porque quer pagar o menor possível pelo produto. Historicamente, nos países colonizados, essa classe de pessoas sempre mantiveram relacionamento. Precisamos agir com inteligência para desmontar o apoio popular que conseguem. A psicologia é uma ferramenta para isso.

 

* Santiago Gómez é Mestre em Literatura UFSC, Licenciado em Psicologia UBA. Psicanalista. Jornalista.

Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.



Por Equipe IREE

Leia também