Muito se escreveu nos últimos dias sobre a Semana de Arte Moderna de 1922, que em fevereiro de 2022 completa cem anos, com críticos e estudiosos repensando os efeitos e impasses desse evento. Um ponto, entretanto, que parece ainda não ter sido tocado, interessa singularmente à recepção da psicanálise nesse contexto.
Em março de 1919, Durval Marcondes, aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, descobre um artigo escrito pelo neurologista Franco da Rocha, com ideias absolutamente disruptivas. O país emergia de uma economia puramente rural para uma industrialização recente e a sombra da escravidão era ainda muito consistente. O texto dava notícias de uma revolução no campo do pensamento, proposta por Sigmund Freud, que dialogava diretamente com as ideias modernistas. As concepções freudianas penetraram no Brasil através, sobretudo, dos poetas e pensadores modernistas, deixando marcas profundas na produção intelectual. O ambiente heteróclito de abertura aos imigrantes, as novidades e misturas, possibilitaram que a psicanálise encontrasse espaço entre os modernistas e sua revolução estética.
Em sua inquietação intelectual, Durval Marcondes foi também tocado pela efervescência daquela semana de 1922. A revista Klaxon, porta-voz do movimento, traz em seu número de agosto, ao lado de trabalhos de Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda e Rubens de Moraes, um poema de Durval: “Symphonia em Branco e Preto”.
100 anos da Semana de Arte Moderna: a refundação antropofágica do Brasil
Semana de Arte Moderna: O que precisamos saber sobre o evento?
Cronologicamente, o primeiro modernista a conhecer Freud parece ter sido Oswald de Andrade que, em 1910, fez uma viagem à Europa. Mas foi Mário de Andrade quem se debruçou sobre os textos de Freud com mais rigor. Suas ideias dialogavam claramente com as de Freud. Em “Paulicéia Desvairada” ele escreve: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita”.
Já Oswald de Andrade repensa, em “Manifesto Antropófago”, a questão da dependência cultural do país. Segundo os críticos, o texto tem claras influências do pensamento freudiano. A forma como Oswald realçava a contradição da formação cultural brasileira era uma maneira de abrigar no seio do manifesto o conflito próprio do moderno que Freud sustentava também em sua obra. Na Revista de Antopofagia, Oswald – sempre provocador, brilhante e iconoclasta – saúda Freud e Padre Cícero: uma síntese do clima de multiplicidade e abertura daquele momento.
O advento da psicanálise e sua recepção pelos modernistas realoca maneiras de pensar e ver o mundo, e isso acaba se traduzindo em questões de linguagem e novos conteúdos formais. Trata-se de uma revolução estética que acontece influenciada, também, pela revolução proposta por Freud: a psicanálise promove um corte epistemológico e ético que funda uma possibilidade da singularidade da pesquisa estética.
Flávio de Carvalho – artista, pintor, arquiteto, dentre muitas outras atividades – foi também leitor de Freud. A série de retratos por ele realizados ao longo de décadas testemunha sua curiosidade intensa pela figura humana e pela subjetividade – apreço condensado em retratos. Seu interesse não era pela fisionomia apenas, mas pelo aspecto psíquico e pela singularidade, expandindo o campo da arte para além de territórios conhecidos, ampliando a própria definição daquilo que pode ser considerado arte ao criar novas bases de reflexão sobre o lugar do homem e da arte no mundo.
Oswald de Andrade nomeia Flávio de Carvalho de “antropófago ideal” – elogio que condensa a imensidão de Flávio. O interesse pela psicologia das massas de Freud e sua subversão, lembra essa espécie de anti-heróismo trágico que vive e revive na transmissão freudiana, nos lembrando que o espírito da psicanálise foi forjado na modernidade e que deve sempre acolher todos os dissensos que daí derivam.
Nessa chave de leitura encontramos o campo aberto para as trilhas da psicanálise: nas relações entre sujeito e modernidade os discursos forjados por Freud enunciam a questão da subjetividade no campo da civilização e trazem a problemática da inserção do sujeito. Com isso, o discurso freudiano assume um estilo trágico de leitura da modernidade e instaura o lugar ocupado pela psicanálise. O desamparo trazido pelo moderno implica e se desdobra nos registros ético e político. É a própria modernidade que impele Freud a repensar os eixos do sujeito e da pulsão.
A psicanálise é uma metáfora das novas modalidades de inserção do sujeito no mundo. Freud forjou uma leitura da modernidade e de seus impasses, pela reinvenção do conflito. Na confluência desses dois campos, psicanálise e modernismo, muita coisa pode acontecer.
Entre as comemorações, críticas e revisões da Semana de 1922 encontramos o momento de recepção do pensamento transgressor que é a psicanálise. Freud anteviu os impasses éticos que deveríamos enfrentar frente ao moderno. Já em 1915, em “Reflexões para os tempos de guerra e morte” ele assinalou a brutalidade do que nomeamos “civilização”, deixando claro que a possibilidade de erradicação do mal não existe, mas devemos eticamente e, antes de mais nada, admitir todos os impulsos e com isso saber fazer algo na partilha do comum. Também é preciso que possamos tomar posse do legado moderno e desconstruir qualquer sentido pronto. Cem anos depois, a atualidade de muitas questões encetadas continua surpreendendo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Leia também

Derivas êxtimas: uma viagem à Bahia e à Bienal de São Paulo
Continue lendo...
Reinventando o Brasil pela arte
Continue lendo...
O espaço público e a dimensão política da fala
Continue lendo...