O artigo “Por uma Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, atuando em todo o território nacional” foi publicado originalmente no Jornal Estadão.
A gestão do ex-presidente da República de extrema direita foi marcada pelo negacionismo da ciência para enfrentar a pandemia do Covid-19, que resultou em quase 700 mil mortes de brasileiras e brasileiros, pelas ameaças golpistas contra a democracia e o estado democrático de direito e pela ampliação indiscriminada do acesso a armas de fogo. A tentativa de golpe de estado, no dia 8 de janeiro de 2023, materializada pela invasão e depredação dos prédios dos três poderes da República, e a minuta de Decreto de estado de defesa no TSE, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, fazem parte de um enredo golpista que permeou os quatro anos do governo do ex-presidente.
O presidente Lula, corretamente, determinou intervenção na Segurança Pública do Distrito Federal, frente aos graves indícios de omissão e conivência do governo do DF, que nada fez para tentar impedir a tentativa de golpe. Por esta razão, foram decretadas as prisões do ex-ministro e ex-secretário de Segurança Pública e do ex-comandante da Polícia Militar do DF, além do afastamento do governador do Distrito Federal pelo prazo de 90 dias, todas medidas determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes e acompanhadas pelo pleno do STF. O Poder Judiciário tem tipo um papel fundamental na defesa da democracia e do estado de direito no país.
Na esfera federal, é preciso apontar também que houve negligência ou inércia dos órgãos de inteligência do governo que, mesmo com a divulgação uma semana antes nas redes sociais de que poderia haver invasão nos prédios dos três poderes (tentativa de golpe), não tomaram as devidas providencias, como sugerir um plano B a ser utilizado caso o governo do DF se omitisse, como tudo indica que ocorreu. Esta falha da inteligência foi destacada pelo próprio presidente Lula em entrevista.
No acampamento dos golpistas, em frente ao quartel general do exército, havia muitos parentes de militares da ativa e da reserva, o que pode explicar a resistência do Exército em realizar sua desmobilização.
É imperativo que todos que participaram da ação golpista: invasores e depredadores dos prédios dos três poderes, financiadores, incentivadores e ou patrocinadores, sejam devidamente investigados e punidos pelo crime contra a estado democrático de direito e a própria democracia, entre outros, respeitando-se, sempre, o devido processo legal e a ampla defesa.
Contra as ações golpistas da extrema direita fascista, o caminho é mais e mais democracia. O ato simbólico da reunião dos chefes dos três poderes com todos os governadores (as) dos Estados e do Distrito Federal é um marco histórico nesta perspectiva.
Os atos do dia 8 de janeiro, porém, mostram que ainda é preciso avançar nas ações de fortalecimento da democracia e do estado democrático de direito. Entre elas, destaca-se a cada vez mais urgente necessidade de adoção de reformas estruturais no sistema de Segurança Pública do país.
Em março de 2022, o Núcleo de Segurança Pública na Democracia do Instituto para Reformas das Relações entre Estado e Empresa – IREE, lançou suas “Diretrizes Gerais para uma Segurança Pública Democrática, Cidadã e Antirracista”, que se transformaram em livro com o mesmo nome. As Diretrizes se pautavam em propostas de Reformas Constitucionais e Infraconstitucionais do sistema de segurança pública. Entre as propostas de reformas estava a criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil.
A criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, uniformizada, portanto, ostensiva, se daria através de uma PEC que altera o artigo 144 da CF. O resultado seria a ampliação dos órgãos que compõe a segurança pública, com a criação de uma nova instituição policial da União para atuar em todo território nacional. Com a criação da Guarda Nacional Permanente de caráter civil se extinguiria a Força Nacional, que se caracteriza por ser uma “instituição” policial improvisada e ambígua: ela é federal, mas formada por policiais estaduais. A Força Nacional até hoje é um Programa, e seu efetivo é composto, em sua maioria, por policiais militares dos estados, grande parte das unidades de choque, sem um código de conduta e estrutura hierárquica próprios.
A Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, em contrapartida, seria estruturada por concurso público, com plano de cargos e salários e estrutura hierárquica adequada. O custo de sua estruturação talvez não fosse muito maior que o custo de diárias dos policiais de vários estados que compõem a Força Nacional, e, uma vez criada, se resolveria uma situação que se arrasta há anos, de um programa que também é “meia instituição”, improvisada e sem estrutura adequada. Nesse sentido, é louvável que o Ministério da Justiça e Segurança Pública proponha a criação da Guarda Nacional de caráter civil, como vem sendo divulgado pela imprensa. Acredito, porém, ser um equívoco a proposta de que a nova Guarda Nacional tenha sua atuação restrita ao Distrito Federal.
Lançamento do livro de Segurança Pública do IREE
Isabela Kalil: É urgente desradicalizar a sociedade brasileira
A Guarda Nacional poderá ter um efetivo específico para cuidar dos três poderes da República edas embaixadas, mas deve ter atuação em todo território nacional, com ações nas fronteiras e na Amazônia, para coibir o desmatamento, o tráfico de drogas , a grilagem de terras e o garimpo ilegal, e também nos estados, quando for solicitada, atuando em situação de crise grave na segurança pública estadual, o que levará, a curto e médio prazos, à diminuição do emprego das FFAA na Segurança Pública, através das GLO. Para cumprir com todas estas atribuições, a futura Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil precisaria contar com um efetivo inicial de pelos menos 5 mil policiais ( e efetivo fixado de 15 mil policiais), podendo ser conferida uma pontuação extra aos policiais que serviram a Força Nacional no concurso de ingresso para a Guarda Nacional permanente de Caráter Civil.
Portanto, a criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil por mais fundamental e urgente que seja, não pode ser intempestiva, para dar conta de uma conjuntura adversa, ela deve ser vista como umanova e importante agência nacional de segurança pública e ser criada no tempo adequado.
Além da criação da Guarda Nacional Permanente de Caráter Civil, as diretrizes do IRRE propunham também:
- Criação de disciplina Permanente, em todas as Escolas e Academias das Polícias, sobre “Racismo Estrutural e Novos Protocolos de Abordagem”.
- Criação do Ministério da Segurança Pública, para dar centralidade a política nacional de segurança pública, como órgão promotor e indutor da política.
- As PMs deixarem de ser forças auxiliares e reserva do Exército. As polícias militares devem ter um único comando e este comando são os governadores dos Estados (emenda constitucional).
- Estabelecimento do princípio do ciclo completo da atividade policial na Constituição.
- Retomada do PRONASCI, idealizado pelo ex-ministro Tarso Genro no segundo governo do presidente Lula, que entre outras iniciativas, incluiu os municípios na segurança pública, através de Termos de Cooperação, de programas e projetos de prevenção à violência e ao crime e do fortalecimento do policiamento de proximidade, que se caracteriza pelo policiamento preventivo e comunitário.
- Revisão da lei do SUSP, para resgatar o caráter de reforma estrutural do sistema de segurança pública, que pautava a ideia inicial de sua criação, não se limitando, assim, às operações integradas policiais, ainda que estas sejam relevantes e importantes.
- Revisão da política de drogas.
- Valorização policial, com Piso Nacional para os policiais militares, civis, penais estaduais e guardas civis municipais e criação de Programa de Saúde Mental, do início ao fim da carreira. Hoje, em média, o suicídio policial é quatro vezes maior que na sociedade brasileira.
- Instituir Programa Nacional de Redução de Homicídios e Mortes Violentas.
- Controle e revisão da política de armas e munições.
- Criação de Escola Nacional de Segurança Pública, destinada a formação de agentes dos Estados e Municípios, com foco na mediação de conflitos, uso progressiva da força e policiamento de proximidade.
- Revisão do Instituto do Inquérito Policial, criado em 1871 e que até hoje permanece inalterado.
- Criação da Ouvidoria Geral das Polícias da União, com autonomia e independência.
O atual sistema de segurança pública, anacrônico e autoritário (que não se alterou em 1982 e nem mesmo após a CF de 1988), abre brechas para o surgimento de milícias, e para a proliferação de narrativas demagógicas beligerantes, que estimulam uma atuação violenta das instituições policiais, cujo alvo principal não é aleatório. A Necropolítica aniquila a juventude negra.
A extrema direita fascista, representada pelo bolsonarismo, ampliou sua presença nas instituições policiais.Entre as razões que permitiram esse fenômeno está a omissão da transição democrática em relação a pauta da segurança, ao não dar centralidade à criação de uma nova política de segurança pública, pautada no tripé: democracia, cidadania e antirracismo. Fortalecer a democracia passa, necessariamente, por se lançar luz à essa importante e complexa questão, e não é mais cabível que o campo progressista se omita desse debate. É ele quem deve capitaneá-lo.
Passou da hora de se estabelecer amplas reformas na segurança pública. A criação da Guarda Nacional Permanente de caráter civil, para atuar no DF e em todo o território nacional, representa um passo importante, mas há outras reformas estratégicas que podem e devem ser implementadas. As instituições policiais devem ser apartidárias e sem ideologias, porque são instituições permanentes do estado brasileiro, e não dos governos. Elas podem e devem, dentro de suas atribuições legais, ser sustentáculo do estado democrático de direito e da democracia, que são valores universais. Os governos federal e estaduais do campo democrático têm responsabilidade na construção gradativa de uma segurança pública democrática, cidadã e antirracista.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Benedito Mariano
Sociólogo. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, ex-Ouvidor da Polícia de São Paulo. Membro Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É coordenador do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IREE e Secretário de Segurança Cidadã da Cidade de Diadema
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