William Wordsworth (1770-1850) era poeta e Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) era poeta. Quando se conheceram, os dois com pouco menos de 30 anos, decidiram imediatamente que deveriam ser vizinhos. Wordsworth fez suas malas e mudou-se para Somerset, no sul da Inglaterra, para uma casa perto de onde Coleridge morava.
Os dois eram órfãos de pai e mãe desde a infância e viam-se agora, além disso, órfãos de um ideal. Tinham sido fiéis à Revolução Francesa. Wordsworth chegou a morar algum tempo na França para se unir aos esforços de luta – corre um boato pouquíssimo confiável entre alguns críticos de que ele teria matado alguém – e Coleridge fundou um jornalzinho revolucionário semi-semanal que ele distribuía de oito em oito dias para evitar pagar os impostos que recaíam sobre as publicações que saíssem de sete em sete. A liberdade, igualdade e fraternidade eram, para eles, pressupostos básicos – apenas o mínimo a que se deve almejar, não o fim e o máximo.
Mas eram ingleses. Seus vizinhos, estreitos de ideias, desconfiaram dos dois apoiadores de uma pátria inimiga. Denunciaram-nos à coroa, que enviou um espião àquelas bandas. Em sua caderneta, ele anotou o que pescou de orelhada de uma conversa dos dois poetas: “Spy nosy“, simplesmente, “espião enxerido”. Samuel Coleridge e William Wordsworth estavam, na verdade, referindo-se ao filósofo “Spinosa”, com suas pronúncias ovaladas de anglófonos. A investigação não deu em nada.
Os dois amigos passavam os dias caminhando pelos campos, pegando caronas em carroças e deitando na relva crescida. Levavam sempre seus cadernos à mão. Escreviam em conjunto, escreviam caminhando. Publicaram um livro juntos em 1798, Baladas líricas, e com ele deu-se início ao movimento romântico na Inglaterra. Coleridge inventou e, juntos, os dois desdobraram um tipo de gênero novo na poesia, que ficaria conhecido como “friendship poem”, “poema de amizade” ou “conversation poem”, poderíamos dizer, “Poema-conversa”. O que o norteia é a simpatia entre quem lê e quem escreve. Eram versos que vinham muitas vezes no meio de cartas, ou se dirigiam como resposta ao poema anterior que o outro amigo havia escrito. Eram longos e atenciosos, fáceis e bons de ler.
O poema deve ser como uma cobra que tem o rabo enrolado na cabeça, dizia Coleridge. Ele começa e termina no mesmo lugar – mas na volta que se dá entre um e outro, tudo acontece, tudo muda.
Em um desses poemas (“Frost at midnight”), ele abre com a seguinte cena: está em casa, à noitinha, enquanto todos dormem, e apenas ele, insone e meditativo, continua em pé. Ele, a lua, as corujas, a cinza na lareira quase extinta (cinzas que, em algumas regiões, ressalta o poeta em uma nota ao pé do poema, eram chamadas de strangers, “estranhos”). Seu filho recém-nascido está no berço, ao seu lado. É só isso.
Mas a cena – o filho, a lua, a lareira querendo apagar – cria uma divisa. O poeta salta sobre ela, e o que encontra é de uma qualidade diversa, distante. Lançado profundamente para dentro e para trás, volta-se em sua memória para a infância, quando, sozinho, ia à escola e se entediava com as aulas.
O tom monótono do professor ia convidando o sono e o livro aberto na mesa parecia girar. O menino Samuel Coleridge ansiava então por qualquer interrupção, por um instante em que se abrisse a porta da sala de aula e fosse anunciada a chegada de alguém – uma tia, um parente, um estranho – e que aquilo o tirasse da natação sem bordas na própria melancolia.
O poema segue: mais um salto e o poeta pensa no futuro, em seu filho que é ainda bebê e nos tédios que virão, e também nas bênçãos. Respira fundo e solta o ar e, quando percebe, está de volta à mesma cena de antes, à mesma lua, ao mesmo espaço, à mesma visão da cinza na lareira.
Geada à meia-noite [Frost at midnight]
A geada realiza seu ofício secreto
Sem qualquer auxílio do vento. O canto da coruja
Soou alto — e, de novo, escuta! Tão alto como antes.
Os companheiros da minha casa, que descansam,
Me deixam a sós, aberto às
Meditações mais abstrusas; exceto que, ao meu lado
Meu filho dorme pacificamente em seu berço.
Está tudo tão calmo! Calmo demais, chega a perturbar
E incomodar o pensamento, de tão estranho
E extremo que é esse silêncio. Mar, montanha e mato,
Um vilarejo povoado!
Mar, e a montanha e o mato
E os infinitos cursos da vida,
inaudíveis como os sonhos!
A tênue chama azul
Já não se mexe na minha lareira, quase apagada;
Só aquela cinza estranha, que estremecia na grade,
Ainda estremece, única coisa imóvel.
Penso que seu movimento, em meio a essa natureza quieta,
Tem uma vaga semelhança comigo, que estou vivo,
E faz da cinza uma forma companheira,
Cujos pequenos tremores e caprichos o espírito ocioso
Interpreta como sendo um de seus humores, buscando
Em toda parte um eco ou espelho para si mesmo,
Fazendo do pensamento um joguete.
Mas, ai! Quantas vezes,
Quantas vezes, na escola, não olhei para as grades, crédulo
E cheio de pressentimentos,
Para ver aquele estranho se agitando! E tantas outras vezes,
De olhos abertos, eu sonhava
Com minha doce terra natal, e sua velha torre de igreja
Cujos sinos, a única música dos pobres, soavam
Da manhã à noite nos dias ensolarados de festa,
Tão doces que me contaminavam e assombravam
Com um prazer selvagem, ressoando em meus ouvidos
Como os sons articulados de algo que está por vir!
E assim eu olhava, até que esses sonhos reconfortantes
Embalavam-me o sono
E o sono prolongava meus sonhos!
Então eu meditava toda a manhã seguinte
Intimidado diante do rosto do preceptor, enquanto meus olhos
Se prendiam em falsa concentração no livro que girava:
Exceto quando a porta se entreabria e eu podia lançar
Uma olhada fugidia, que punha meu coração em sobressalto,
Pois eu ainda tinha a esperança de ver o rosto de um estranho,
Um conterrâneo, uma tia, ou minha irmã mais adorada,
Minha companheira de brincadeiras quando ainda nos vestíamos iguais!
Querido filho, que dorme em seu berço ao meu lado,
Sua respiração suave, nessa calma profunda,
Preenche os intervalos espaçados
E as pausas momentâneas do pensamento!
Meu filho, tão bonito! Um orgulho terno
Preenche meu coração quando te vejo,
E quando penso que você vai aprender tantas outras lições,
Em paisagens tão distantes! Já eu,
Fui criado na grande cidade, fechado em claustros escuros,
Onde a única beleza visível era a do céu e das estrelas.
Mas você, meu filho! viverá como uma brisa
Que vagueia pelos lagos e pela areia das praias, sob as escarpas
De montanhas antigas, e sob as nuvens
Que espelham em sua massa os lagos e as praias
E as montanhas: assim, você verá e escutará
As formas adoráveis e os sons inteligíveis
daquela língua eterna, a língua de seu Deus,
Que ensina, desde o infinito,
como Ele está em tudo, e todas as coisas, n’Ele.
Grande professor universal! Ele dará forma
Ao seu espírito, e quanto mais te der, mais vontade você terá.
Assim, todas as estações do ano lhe serão doces,
Quer o verão recubra a terra
De verde, ou o tordo pouse e cante
Em meio à neve acumulada nos galhos secos
Da macieira coberta de musgo, enquanto a palha congelada dos telhados
Derrete e esfumaça ao sol; quer o orvalho caia
E se faça ouvir apenas em meio à tempestade,
Quer o ofício secreto da geada
O pendure em pingentes de gelo mudos
Que brilham, calmos, à calma lua.
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Sofia Nestrovski
É escritora e mestre em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo. Ao lado de Leda Cartum, é roteirista e apresentadora do Vinte Mil Léguas: o podcast de ciências de livros. Publicou, com Deborah Salles, a HQ Viagem em volta de uma ervilha (editora Veneta, 2019). Manteve, de 2017 a 2019, a coluna "Léxico", no Nexo Jornal. Seu site é www.sofiasofiasofia.com
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