Discussões sobre as eleições presidenciais de 2022, em alguns fóruns, têm se centrado em uma dualidade ao mesmo tempo falsa e improdutiva. Só serve para fins diversionistas a altercação, que volta e meia emerge, entre a construção de uma ‘frente ampla’ ou de uma ‘frente de esquerda’ em defesa do Brasil.
Ambas as opções apresentam-se com a finalidade genérica de interditar as ameaças ao Estado Democrático de Direito e às garantias Constitucionais, frutos dos arroubos autoritários do atual presidente da República e sua trupe.
Mas nenhuma delas aponta qual o verdadeiro coração da discussão nesta conjuntura: a defesa dos direitos da população pobre e o combate às desigualdades sociais que são estruturais e estão profundamente acentuadas na atual correlação política, econômica e sanitária.
Esses dois, sim, devem ser os pontos capazes de amarrar uma ampla aliança dos democratas brasileiros pela retomada da normalidade nacional.
Devem ser abortadas as discussões rebaixadas e por vezes sectárias, assim como as falsas divergências, que cumprem mais a função de fazer os diálogos andarem em círculo do que avançar efetivamente para uma síntese.
Alguns argumentos e ponderações são essenciais para sustentar essas premissas.
O primeiro diz respeito ao fato de que o bolsonarismo, de tão excrescente, faz surgir unidade onde nunca houve. Tem sido assim nas pautas chamadas “de costume”, a exemplo de discussões de igualdade de gênero e de defesa dos direitos LGBTQIA+; como também em outras gerais, como a defesa do meio ambiente, do desenvolvimento sustentável e até o outrora polêmico provimento de uma renda mínima para os brasileiros empobrecidos
Em um Brasil civilizado, tais pautas não são, como já escrevi nesse espaço há alguns meses, de esquerda ou de direita. Isso, por si só, coloca qualquer frente democrática a ser construída, mesmo que em formato amplo, à esquerda no debate político.
E também interdita, num tempo só, a agenda ultra-neoliberal do bolsonarismo e do ‘pauloguedismo’ e a agenda de retirada de direitos de uma direita liberal que pretende aparecer envernizada pelo que eles chamam de “pautas identitárias”.
Uma segunda questão é que, sozinha, a defesa da democracia é incapaz de mobilizar a parcela da sociedade que é decisiva na urna, notadamente o povo pobre, os trabalhadores abandonados pelo Estado e por isso colocados em condições subalternas de fome, desemprego e desassistência.
Para essa gente, gente da qual tenho origem, majoritariamente negra, acostumada a conviver nas periferias com uma configuração muito própria de “democracia”, mais importa elementos concretos, como a comida na mesa, a educação dos seus filhos e, nesse momento de pandemia, uma assistência de saúde qualificada.
O que, de uma perspectiva humanística, significa democracia mais concretamente do que as abstratas defesas democráticas de uma classe média ou intelectualizada, ou historicamente distanciada das realidades das favelas, ou as duas coisas.
Nesse contexto, apresenta-se a terceira questão.
Cabe aos democratas de esquerda e de centro-esquerda abrir mão de retóricas contraproducentes em benefício, sim, de uma frente ampla. Claro que isso deve ocorrer mediante um projeto econômico avançado, que faça essa frente ter a cara do povo brasileiro – e não de uma burguesia nacional aporofóbica. Mas a polarização, a não ser com o bolsonarismo, já não serve mais.
Pode parecer contraditório, e talvez até seja, mas o momento é delicado e requer a observação de pesos e contrapesos em prol de uma frente que seja, de fato, ampla. Só assim o Brasil será plural e viável.
Defender tão somente a “democracia”, mesmo que associada a um modelo econômico que vilipendia direitos, e tensionar por uma ideia de ‘frente de esquerda’ radicalizada, que não permita diálogo, são armadilhas igualmente perigosas.
A primeira, à direita, coloca o combate às desigualdades e a defesa de direitos em segundo plano. Já a segunda, à esquerda, põe divergências em pautas que precisam caminhar, a cada dia, no sentido de serem consensuais, óbvias, incontroversas.
São dois alçapões que fazem com que parâmetros e réguas não tão distantes sejam polares.
É sempre importante lembrar que os democratas de direita são indispensáveis ao nosso lado para derrotar o autoritarismo. Ainda que, num futuro não tão distante, eles tenham flertado com esse mesmo autoritarismo.
Para mim, está nítido que o debate da próxima eleição estará no patamar em que nós colocarmos o sarrafo. Por isso, nosso olhar deve ser para o povo que tem sofrido com a crise.
Algo diferente disso pode permitir que alguns espectros políticos tratem como radical o que é básico. Pior: abre espaço para que reivindiquem um modelo econômico agressivamente neoliberal, como se fosse aceitável permutar a garantia da “democracia” em troca de recuos da esquerda em pautas que são moderada até para o próprio capitalismo.
Não podemos abrir mão de um programa econômico que aponte a pobreza, a carestia e o austericídio como cânceres sociais a serem combatidos. Isso não é de esquerda nem de direita.
Se a defesa é de fato a democracia, não pode haver divergência nem ideologia em matar a fome de quem tem vivido em qualquer nível de insegurança alimentar.
Tampouco podemos tratar o respeito a liberdades individuais como “concessões”, porque essas tratam-se de questões civilizatórias básicas para o Brasil, supraideológicas.
Uma frente ampla é uma frente que defende direitos individuais e coletivos e que combate clivagens sociais graves. Democracia se constrói com oportunidades iguais, comida na mesa e fomento a formas de exercício pleno da cidadania. Repito: é o básico.
O contrário disso é o neoliberalismo, que empurra as pessoas para a miséria a partir da ausência do Estado, promove a negação da política à medida que a “democracia” não resolve as dores do nosso povo sofrido e acaba fazendo emergir aberrações sociais como o bolsonarismo – risco que o Brasil não pode mais correr.
Tenho certeza de que os democratas brasileiros, de esquerda e de direita, não discordam de matar a fome do povo e promover desenvolvimento econômico e social para o seu país. É nosso papel dialogar nesse sentido e aparar as arestas para que caminhemos juntos em 2022.
Ou talvez eu seja muito ingênuo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Yuri Silva
É Diretor de Políticas de Combate e Superação do Racismo, no Ministério da Igualdade Racial. Foi Coordenador de Direitos Humanos do IREE. Jornalista formado pelo Centro Universitário Jorge Amado, é coordenador nacional licenciado do Coletivo de Entidades Negras (CEN), editor-chefe do portal Mídia 4P – Carta Capital, e consultor na área de comunicação, política e eleições. Colaborou com veículos como o jornal Estadão, o site The Intercept Brasil, a revista Piauí e jornal A Tarde, de Salvador. Especializou-se na cobertura dos poderes Executivo e Legislativo e em pautas relacionadas à questão racial na sociedade de forma geral e na política. É Membro do Diretório Estadual do PSOL de São Paulo.
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