Pela visibilização e memória das periferias na pandemia – IREE

Análises e Editorial

Pela visibilização e memória das periferias na pandemia

Por Ana Maura Tomesani*

A pandemia acabou? Para a Organização Mundial da Saúde, ainda não é possível decretar o fim da pandemia, mas é consenso que ela esteja chegando ao fim. No Brasil, temos 85% da população vacinada. As máscaras seguem sendo exigidas em alguns espaços, como clínicas e hospitais, e o álcool em gel parece ter vindo para ficar: hoje todo mundo carrega um frasquinho no bolso ou na bolsa. Se as coisas parecem estar voltando à velha normalidade, não podemos nos esquecer de que deixamos para trás um doloroso e macabro rastro de quase 700 mil mortes – boa parte delas evitáveis, segundo especialistas. E agora, é esquecer e bola pra frente? Não. De jeito nenhum.

É preciso que haja muita pesquisa e muitos projetos que mantenham viva a memória deste momento. Não podemos seguir adiante e esquecer nossos mortos. Precisamos honrar estas vidas, aprender com o ocorrido e responsabilizar quem precisa ser responsabilizado. Dito isso, diversas lives veiculadas na pandemia e os documentos lançados por comunidades mostraram que a pandemia não foi a mesma em todos os lugares. As periferias vivenciaram este período de maneira muito mais intensa e insegura, à margem da proteção sob a qual o poder público fazia crer que estavam os centros urbanos e áreas nobres das cidades.

É isso que também nos revelam os testemunhos já registrados na Plataforma Periferias na Pandemia, projeto do qual me orgulho de ser uma das organizadoras. Trata-se de um site, um espaço alimentado pelo(a)s usuário(a)s, com testemunhos que podem ser registrados em formato de texto, áudio, vídeo e/ou foto. A iniciativa, liderada pelo Centro de Estudos em Conflito e Paz (CCP), do qual faço parte, ligado ao NUPRI (Núcleo de Relações Internacionais da USP) e pelo projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, visa à criação de um memorial que retrate as dificuldades e a luta diária e resiliente de sujeitos e sujeitas periférica(o)s depois de março de 2020. A construção da plataforma contou com o apoio financeiro do Center for Human Rights and Humanitarian Studies (CHRHS), Watson Institute, Brown University.

A intenção é de que a Plataforma se torne fonte de informação a pesquisadora(e)s, jornalistas, estudantes, gestora(e)s ou pessoas leigas que simplesmente queiram se informar sobre as diferentes maneiras como as periferias enfrentaram e ainda enfrentam a pandemia. Até o momento, a plataforma, lançada no final de agosto, conta com pouco mais de 30 testemunhos. Estamos iniciando um processo de busca ativa de lideranças comunitárias para que se sintam encorajadas a conceder seus testemunhos e divulgarem a plataforma nas suas comunidades. A ideia é chegar ao final de 2024 com ao menos 500 testemunhos – queremos construir um espaço para que os sujeitos e sujeitas periférica(o)s sejam produtora(e)s de conhecimento e possam, por si mesmos, contar suas histórias de maneira livre e sem cortes.

Dos testemunhos já constantes da plataforma, é possível verificar alguns padrões interessantes. Um deles diz respeito ao auxílio emergencial. Se uns dizem que foi insuficiente e outros que o acesso ao benefício era complicado, não há dúvidas de que a ajuda foi absolutamente fundamental, corroborando com dados que já estávamos monitorando através do projeto que nos levou à construção do site: “Diante do desemprego que nos afetou (…), reduzimos o consumo ao máximo, sobretudo, alimentício, de modo a minimizar os impactos refletidos pela crise pandêmica. O auxílio emergencial do governo, juntamente com o seguro desemprego (…), resguardou-nos do pior” – este é o testemunho de Murilo Aquino, morador da periferia de Guarulhos.

Foram vários os relatos segundo os quais a periferia nunca parou, por exemplo. A maior parte dos moradores e das moradoras dos bairros periféricos compõem a força de trabalho dos chamados “serviços essenciais” e, por esta razão, o lockdown não era uma realidade viável nestes espaços: “Fechamento de escolas, lockdown e outras medidas de “segurança” foram decididas de acordo com outras realidades, e fomos incluídos nelas como parte de um geral. Não pensaram nas consequências para a periferia, as pessoas precisavam trabalhar para ter comida em casa (…) Ter renda sem sair de casa não foi uma opção para a maioria das pessoas”, afirma Bianca Teixeira, de São Paulo. Ironicamente, lá mesmo onde tudo continuou funcionando dentro da “normalidade” para que o centro e as áreas nobres pudessem continuar gozando da proteção do isolamento social, faltaram justamente os serviços essenciais. O testemunho de Paulo Rodrigues Araújo, de Teresina-PI, explica que durante a pandemia o serviço de coleta de lixo foi interrompido em sua comunidade: “Vimos as praças em estado de quase que floresta, os terrenos baldios, as ruas escuras acabaram se tornando um ponto de lixo”.

Um outro lado muito interessante revelado pelos testemunhos foi o da solidariedade e resiliência das comunidades, que se organizaram para arrecadação e doação de cestas básicas e materiais de higiene e proteção pessoal. Para além disso, a articulação com comércios locais para doação de alimentos foi muito importante no combate à insegurança alimentar diretamente relacionada à pandemia – há entre os testemunhos vários relatos de pessoas ou familiares próximos que foram demitido(a)s ou afastado(a)s sem remuneração de seus postos durante este período.

O espaço não apenas traz à luz a vivência da pandemia no dia a dia das pandemias, como também está aberto às críticas com relação à inação do estado em momentos cruciais, como este concedido por Arlete Anchieta, de Manaus: “Um dos aspectos mais chocantes foi a sensação de falta de sensibilidade do governo quando da crise de falta de oxigênio no estado do Amazonas, quando a Venezuela ofertou o oxigênio que poderia ter chegado em questão de horas de avião (que não foi viabilizado), e só chegou à capital com grande esforço por uma rodovia de tráfego inviável. Foram mortes não evitadas por falta de cuidado político”.

A plataforma, que conta com nosso incansável e voluntário empenho, deve crescer nos próximos meses. Os testemunhos já postados nos revelam um rico e detalhado panorama da pandemia nas periferias que foi ignorado pela imprensa nacional. Aliás, paralelamente à manutenção da plataforma, nós realizamos pesquisas sobre o tema e publicamos em periódicos nacionais e internacionais. Um dos nossos achados de pesquisa, publicado em artigo de livro recentemente, é que a imprensa internacional focou a crise sanitária do Brasil nos povos indígenas somente, ignorando diversas outras comunidades periféricas tão vulnerabilizadas quanto as indígenas, provavelmente por ausência de informações sobre o enfrentamento da pandemia por parte de outras comunidades. Esta é mais uma lacuna que a plataforma visa preencher. Por esta mesma razão, um dos nossos objetivos de curto prazo é captar recursos para a tradução dos testemunhos para o inglês e o espanhol de modo que o conteúdo possa estar acessível ao público não-lusófono, sobretudo pesquisadora(e)s e jornalistas que vêm acompanhando os desdobramentos da pandemia em nível global.

Por fim, bola pra frente, sim. Esquecer o passado, jamais. Muito pelo contrário. É preciso olhar para ele e olhar com lupa. Estudar esta passagem tão recente da nossa história e planejar um futuro mais digno envolve projetos como este, que pretendem contribuir não apenas para o desenvolvimento da ciência e de políticas públicas, mas também para a não-invisibilização do sofrimento de populações já castigadas pela ausência crônica de serviços públicos básicos em seus territórios e comunidades.

* Ana Maura Tomesani é Doutora em Relações Internacionais (USP, 2019), integrante da Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança (PCECS), especialista da Rede A Ponte e pesquisadora do NUPRI – Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP. Faz parte do Grupo de Experts da Global Alliance Against Transnational Organized Crime. Foi coordenadora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para assuntos relacionados à segurança pública, participação social e qualidade dos dados. É atualmente colaboradora da Plataforma Laboratório Social e pesquisadora do Frameworks Institute.



Por Equipe IREE

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