As intervenções/invasões dos EUA na América Latina nunca tiveram a mesma violência armada que no Médio Oriente e na Ásia, mas os quadros mentais que as orientaram foram os mesmos e coincidem também com os que em tempos mais recentes têm caracterizado as intervenções em África, nos Balcãs ou na Líbia. Uma análise atenta é necessária porque pode vir a ser útil para esclarecer intervenções/invasões futuras. As características fundamentais são as seguintes:
1. Desde 1945 que nenhuma intervenção norte-americana visa estabelecer ou restabelecer a democracia. Pelo contrário, os regimes que emergem depois das intervenções são autoritários e ditatoriais, por vezes mais autoritários do que os que visaram depor. Em depoimentos coligidos nos Afghanistan Papers um experiente diplomata afirma que a democracia nunca foi o objectivo. “No Afeganistão o objectivo era acabar com vinte e três anos de guerra, e falhámos”.
2. A intervenção é decidida em função exclusivamente dos interesses do país que intervêm. Há sempre muitas maneiras de definir esses interesses, mas os que prevalecem são sempre os do grupo no poder. Desde há muitas décadas que o complexo militar-industrial dos EUA tem tido um papel determinante na escolha do objectivos. E este complexo está intimamente ligado ao interesse geoestratégico de garantir o acesso aos recursos naturais.
No caso do Afeganistão o interesse dos EUA em intervir vinha dos anos 1990 e foi justificada com a necessidade de construir e proteger o gasoduto que do Turquemenistão à India, passando pelo Afeganistão e pelo Paquistão, resolveria as carências de energia da Asia do Sul (gasoduto conhecido por TAPI, a iniciais dos países envolvidos). Foi o mesmo motivo de sempre: garantir o acesso aos recursos naturais e, em tempos mais recentes, impedir o controle da China e da Russia.
3. A intervenção tem de ser conduzida com o mínimo de conhecimento de tudo aquilo que não tem relevância para ela. A ignorância é aqui militante. Não se trata de uma omissão de conhecimento; trata-se, outrossim, de uma acção de desconhecimento. A ignorância é, pois, uma estratégia de dominação. No caso do Afeganistão, o desconhecimento ocidental dos EUA e seus aliados é pasmoso.
Em artigo publicado em 2015 no Wilson Center e intitulado “America’s shocking ignorance of Afghanistan”, Bejanmin Hopkins mostra que as políticas ocidentais sobre o Afeganistão assentam ainda hoje nas ideias contidas num livro do primeiro embaixador britânico ao reinado do Afeganistão, Mountstuart Elphinstone, publicado em 1815. O autor tinha lido as narrativas de Tácito sobre as tribos germânicas e foi com base nisso e nas recordações dos clãs da sua Escócia natal que construiu todas as ideias da sociedade tribal afegã. Segundo Hopkins, o mapa etnolinguístico militar do exército norte-americano é hoje pouco mais que uma atualização do mapa contido no texto de 1815.
Assim se assumiu que o problema do Afeganistão não era político, e sim etno-cultural, e que a cultura tribal era responsável pelo extremismo e pela corrupção. Claro que o problema não está em salientar a importância da cultura, é ter dela uma concepção a-histórica e estereotipada. A ignorância da realidade afegã foi fundamental para conceber os afegãos como passivos recipientes das políticas ocidentais, do bloco soviético ou da NATO. Os “peritos” sobre o Afeganistão eram peritos… em terrorismo. O reducionismo tribalista não permitiu ver que a sociedade afegã é hoje também uma sociedade de refugiados e globalizada. Mas permitiu justificar facilmente todo o tipo intervenções que resultaram em trágicos fracassos.
4. Sempre que há uma invasão/intervenção, há população local que a acha benéfica. Não se trata apenas das elites locais que podem beneficiar directamente com a intervenção. É este também o caso de fracções das classes médias e populares que têm queixas contra quem tem governado ou está farta de violência e vê na intervenção algo benéfico.
No caso da Afeganistão, a invasão dos EUA foi bem recebida por alguns grupos sociais que queriam pôr fim à violência; outros acreditaram que, como os EUA eram um país democrático e desenvolvido, a intervenção traria democracia e desenvolvimento (bem preciso num dos países mais pobres do mundo); outros ainda, como o das activistas feministas, acolheram a invasão com entusiasmo, na esperança de verem finalmente contempladas as suas agendas.
5. Quando se dá a intervenção, os EUA nunca apoiam os sectores moderados, por vezes democratas, que vêem na força externa o meio de controlar os grupos extremistas cujos conflitos acabam por inviabilizar os processos democráticos. Tal como aconteceu no Iraque e na Síria, também no Afeganistão esses grupos foram os primeiros a ser postos de lado, talvez porque fossem os únicos que não possuíam armas nem exércitos, talvez porque eram democratas e a democracia não estava na lista da missão.
6. Mesmo quando as intervenções dos EUA têm por missão acabar com a corrupção, a sua intervenção é um factor poderoso de indução da corrupção. O Afeganistão é particularmente exemplar a este respeito. Os invasores contactam com aqueles a que têm acesso, quase sempre nas cidades, e os que falam inglês ou têm dinheiro para pagar a tradutores. Esta é um a pequena fração da sociedade civil local (a sociedade civil íntima) e a que melhor conhece os meandros do poder e modo como se pode roubar o dinheiro de cooperação internacional. Muito desse dinheiro fica nessas mãos, em vez de chegar a quem dele precisaria.
A corrupção foi tão alta no Afeganistão que os oficiais dos EUA, depois de terem gasto 88 mil milhões de dólares para treinar os 300.000 soldados do exército nacional afegão, tiveram de abater ao efectivo 42.000 “soldados fantasmas” que não existiam e eram apenas um artifício para desviar dinheiro. Em 2016, o Congresso norte-americano criou o Special Inspector General for Afghanistan Reconstruction (SIGAR) e concluiu que a missão dos EUA tinha sido decisivamente afectada pelo nível de corrupção; publicou então uma “galeria de avareza” que é apenas a ponta do iceberg (os nomes nessa “galeria” são todos de norte-americanos).
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Boaventura de Sousa Santos
É sociólogo e poeta. É professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É Diretor Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça. Tem trabalhos publicados sobre globalização, sociologia do direito, epistemologia, democracia e direitos humanos.
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