Por Samantha Maia
Em maio de 2022, pesquisas indicavam que um Presidente da República em exercício nunca havia tentado a reeleição com um índice tão alto de rejeição. Segundo o DataFolha, 54% dos brasileiros diziam que não votariam em Jair Bolsonaro de jeito nenhum.
Ao final da apuração das urnas do primeiro turno, no dia 2 de outubro de 2022,o candidato pelo PL chegou a 43,2% dos votos, atrás do ex-Presidente Lula da Silva (PT), que conquistou 48,4% dos votos. Apesar de ficar em segundo lugar, fato inédito para um Presidente em campanha para reeleição, o resultado mostrou que, ao contrário que muitos apostavam, o bolsonarismo mantém uma força eleitoral relevante.
Para a historiadora Patrícia Valim, Professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a força de Bolsonaro foi subestimada, assim como sua estratégia política e a ausência de limites no uso da máquina pública.
“A campanha de reeleição do Bolsonaro começou no dia que ele assumiu há quatro anos. Acho inclusive que ele tem um projeto de poder dinástico, essa coisa dos filhos 01, 02, 03, 04 é muito paradigmática desse projeto de poder que não se encerra. Ele nunca escondeu que jogaria duro para a reeleição”, diz Patrícia Valim.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista do IREE com a especialista sobre o desempenho de Jair Bolsonaro no primeiro turno, a estratégia da oposição e o negacionismo como forma de governar da extrema-direita.
Como avalia o desempenho do Presidente Jair Bolsonaro no primeiro turno?
Patrícia Valim: Analisando os mapas eleitorais e ouvindo pessoas, eu acho que temos três dimensões que explicam o resultado de Jair Bolsonaro no primeiro turno. Uma é o voto útil de um setor da classe média que estava indeciso, pessoas que não são bolsonaristas, mas são sobretudo antipetistas. Você tem uma classe média que tem como projeto a manutenção da distinção em relação a demais setores da sociedade mesmo que ao custo de perdas econômicas e que não é exclusivamente bolsonarista.
A segunda dimensão tem a ver com o que eu ouvi de três trabalhadoras negras em Ouro Preto (MG) e que me chamou muita atenção. Elas me falaram o seguinte: “Fiquei com tanto medo do Bolsonaro perder e ter violência, que eu acabei votando nele”. São pessoas trabalhadoras, que ganham salário mínimo, e que votaram no Bolsonaro com medo da violência. As notícias de violência política têm deixado as pessoas muito assustadas. Você pode dizer que três pessoas não é uma boa base, mas o argumento delas é preocupante e verossímil sobretudo para um setor que está historicamente no limite da violência no Brasil. Ou seja, é o medo como fator de voto.
A terceira questão é que subestimaram a força de Jair Bolsonaro por não entenderem a dimensão do que é o bolsonarismo no Brasil. Subestimaram inclusive a ausência de limites do uso da máquina pública para se reeleger. Ele está no poder, ele tem a máquina e a caneta nas mãos. Porque se tem uma ideia republicana de quinta categoria de achar que o que eu não faço o outro também não é capaz de fazer. O que não é verdade. Quando a gente acha que o Bolsonaro chegou no subsolo, ele cava mais dois andares, não tem limite.
Subestima-se também a capacidade de Bolsonaro ao tratá-lo como se fosse um problema cognitivo, como se fosse um sujeito completamente destituído de racionalidade, um monstro. Ele é um político de extrema-direita que sabe o que está fazendo e que é muito perspicaz nas suas estratégias políticas. E os bolsonaristas têm um projeto de sociedade extremamente autoritária e conservadora.
A campanha de reeleição do Bolsonaro começou no dia que ele assumiu há quatro anos, ele nunca escondeu. Acho inclusive que ele tem um projeto de poder dinástico, essa coisa dos filhos 01, 02, 03, 04 é muito paradigmática desse projeto de poder que não se encerra, e isso ficou claro. Ele nunca escondeu que jogaria duro para a reeleição.
Diante desse cenário, como avalia a estratégia da oposição?
Patrícia Valim: Eu pesquiso e estudo esta questão desde pelo menos 2013, e vejo alguns erros de estratégia. Desde a eleição de Bolsonaro, você tem um rebaixamento do nível no universo da política por ficar muito refém de uma agenda da grande imprensa de que a sociedade está polarizada. Mas diante do fascismo e de uma necropolítica é preciso estar polarizado. É só a polarização que combate o fascismo.
Ninguém nasce sabendo o que é uma democracia, uma República, sobretudo as novas gerações que chegaram ao mundo no Brasil com a vida ganha, no governo Lula. Eu nasci em 1971, a minha formação está muito ligada à redemocratização do país, então a gente sabe o que é perder porque sabe o que foi a luta para se ter uma democracia, ainda que com todos os defeitos.
Então há um problema quando políticos de esquerda agem no polo inverso da política, pois não dá para ser negacionista no campo da esquerda. É preciso polarizar. E setores da esquerda acharam que não polarizando iriam conquistar esse eleitorado do Bolsonaro. Eu acho que esta eleição é a prova final de que isso não funciona.
Quando se tem as mesmas políticas públicas sem tensionar, quando se age sem a polarização, o que prevalece para a população é a novidade, e o Bolsonaro se coloca até hoje como novidade apesar dos quatro anos de governo de morte que ele teve. Quando grande parte da imprensa vem com essa coisa de que não podemos polarizar, o projeto é justamente esvaziar as políticas públicas que mais distanciam o PT do centro, da direita e da extrema-direita. Então você tem uma despolarização equivocada que despolitiza, e o que prevalece é a novidade.
Como explicar a grande preferência do Nordeste pelo candidato do PT?
Patrícia Valim: Pelos resultados econômicos da região durante o governo Lula, quando houve uma pujança econômica no Nordeste e todos os indicadores da região cresciam muito acima da média nacional. O número de desemprego caiu drasticamente, aumentou o acesso de estudantes às universidades. Os governos petistas de fato investiram no combate às assimetrias regionais, com muito investimento em um projeto de integração nacional.
O Nordeste era uma região extremamente precária, um bolsão de pobreza, e você acaba com o problema da seca com o programa de cisternas, passa de uma para seis universidades na Bahia, casas são construídas, Luz para Todos. O crescimento da região chegou a ser maior que a média nacional.
O atraso nordestino é um projeto político da classe dominante brasileira que opera, a partir da industrialização do Sudeste e o fim do escravismo, para que o Nordeste passe a exportar mão de obra desqualificada para ser super explorada no Sudeste. Os governos petistas rompem com esse destino manifesto, com esse projeto político, e dão a possibilidade até das pessoas quererem permanecer no Nordeste.
Eu me pergunto porque isso não é mostrado na campanha. Quando a despolarização despolitiza, você não comunica. O Nordeste tem os maiores estados produtores de frutas do país, com uma das maiores exportações do mundo. Tem muito agro no Nordeste. É preciso comunicar isso.
O que considera uma estratégia de polarização com o bolsonarismo?
Patrícia Valim: Quando se tem a derrota de Fernando Haddad (PT) para o Bolsonaro em 2018, o caminho era fortalecer o cinturão progressista do Nordeste e a partir dali ampliar o seu eleitorado. Qual foi o caminho que foi escolhido em 2020? Fortalecer candidaturas conservadoras do Nordeste. Qual foi o caminho escolhido em 2022? Estabelecer alianças em uma grande frente para derrotar o fascismo, o que eu concordo, mas com setores extremamente conservadores. E mesmo assim o PT sai fortalecido no cinturão progressista, a derrota do Bolsonaro no Nordeste é acachapante.
Além da despolarização que despolitiza a política, você não tem debate, quem pauta o debate político no Brasil é o Bolsonaro. E na campanha de 2022, qual foi a estratégia da esquerda? Foi olhar para o passado, quando de um lado ele ainda se vende como novidade, do outro lado tem alguém dizendo para olhar para trás.
As pessoas querem saber o que o PT tem de concreto para lidar com os dramas concretos de suas vidas, que não se resumem à comida. Mas é o filho da mãe solteira que está na periferia e é assassinado pela polícia, é o marido que a violenta. Você tem uma série de violências sobrepostas, uma população que já vive no limite entre a vida e a morte, que foi a mais prejudicada na pandemia e que está querendo alternativas concretas para a vida dela. Eu acho que essa população não está de todo convencida.
Se olhar no campo da esquerda, quem é que mais ganhou nessa eleição? São pessoas ligadas aos movimentos sociais, às pautas mais democráticas, como a cidadania LGBTQIA+ e indígena, pessoas que se posicionaram radicalmente contra o Bolsonaro. O Guilherme Boulos (PSOL-SP), eleito deputado federal com mais votos em São Paulo, é o resultado mais cabal disso. Ele não fica mediando o discurso contra o Bolsonaro.
Houve avanço da esquerda nas eleições para a Câmara dos Deputados, o que não se refletiu no Senado, por quê? Porque essa composição de alianças na frente ampla colocou candidaturas para o Senado que não eram tão boas. A eleição do Senado é a prova de que a frente ampla não funcionou. Quando você não polariza, não mostra a diferença.
Você tem escrito sobre o negacionismo ser o ponto central do bolsonarismo. Poderia falar mais sobre essa análise?
Patrícia Valim: O Bolsonaro é um negacionista profissional. É diferente do sujeito comum que tem uma historicidade autorreferente, que acredita apenas no que os próprios sentidos captam. O negacionista profissional não nega qualquer coisa, ele nega que as mortes por genocídio tenham sido causadas como política de estado. Ele se beneficia politicamente, o negacionismo é uma forma de governar da extrema-direita.
O negacionista profissional cria um vocabulário, práticas, modos de agir e políticas públicas negacionistas. O Bolsonaro consegue ir para um debate e negar a verdade. Ele vai para a ONU e ele mente. E a esquerda não foi capaz de montar uma campanha para acusá-lo de negacionismo, porque ainda não reconhece o negacionismo como uma forma de governar da extrema-direita. Ainda não reconheceu a centralidade do negacionismo, que existe não só no Brasil, mas em um circuito mundial.
O negacionismo tem público porque a grande imprensa não o acusa. Então, por exemplo, para falar sobre a pandemia, a TV chamava o Osmar Terra e um cientista, mas o Osmar Terra negava a vacina. Como dar espaço? Você tem que acusar o negacionismo, mostrar que Bolsonaro não só não comprou as vacinas, como mentiu que a cloroquina funcionava e distribuiu medicamentos sem comprovação científica para comunidades indígenas. Isso é genocídio. As pessoas achavam que a cloroquina ajudava, e ela mata também, porque não é todo mundo que pode tomar, além de não ser um remédio para vírus.
O antipetismo ainda é uma variável nesta eleição, mas não é determinante como era em 2018. Em 2022, as pessoas já deveriam denunciar o negacionismo, que é o centro da política bolsonarista.
Leia também

A Covid, o Bobo e o Perro Defunto
Continue lendo...
Ronaldo Caiado: Credibilidade é o que te leva ao final da reta
Continue lendo...
Henrique Vieira: Radicalização à direita vai além dos evangélicos
Continue lendo...