O recente apagão de sete horas das redes sociais pede muitas reflexões. A pane das principais ferramentas de comunicação, atualmente utilizadas para quase tudo – pedir comida, falar com amigos, tratar de assuntos profissionais, marcar consultas médicas, fechar negócios – trouxe a possibilidade de tatear um silêncio forçado e, a partir deste ponto, articular uma leitura da cultura entrelaçada pela psicanálise: a forma como as subjetividades vêm sendo forjadas.
A tecnologia molda o homem e modela, sobretudo, a ideia de sujeito. Diante do silêncio – que nos impede de fazer por nossa conta – fomos interpelados e chamados a perceber as nuances da dimensão devastadora e imaginária das redes sociais nos modos de subjetivação. A internet, com seu potencial de hiperconectividade, trouxe reflexos na relação com o outro, o tempo e o espaço. O efeito de grupo é potencializado pela maneira imediatista e acrítica com que opera o pensamento de manada. As práticas superegóicas de ódio e linchamento virtual encontram solo fértil para se disseminarem, pois o empuxo ao “um” e a sensação de pertencimento, ainda que frágil, fornecem a ilusão narcísica de reconhecimento.
O documentário “Eis os delírios do mundo conectado”, do diretor alemão Werner Herzog, nos coloca diante dessas questões perturbadoras. Do surgimento da rede conectada, passando pela maneira como a internet se desenvolveu e se infiltrou em todos os espaços da existência, o filme revela alguns impasses éticos que erigem daí: uma família teve expostas fotografias da filha morta; viciados em jogos não conseguem mais distinguir real e virtual, e se esquecem até de suas necessidades mais básicas; delírios alicerçados na fantasmagoria da internet; doenças causadas pelo uso excessivo dos celulares. A queda simbólica acontece em velocidade tão frenética que não permite qualquer elaboração.
Herzog também investiga o pensamento hacker que surgiu na esteira da internet, a ideia frágil de segurança nas redes e as guerras e disputas por informação, hoje travadas no ambiente virtual. No documentário, o diretor aborda toda sorte de alienação – como viagens a outros planetas – e também se posiciona ante visões apocalípticas, dando voz a diferentes estudiosos que destacam tanto os aspectos interessantes da tecnologia, como também algo da morte da singularidade e do laço social, denominado por um especialista como “internet do eu”.
O filme é de 2016, e o futuro se confirma aqui e agora. A lógica do algoritmo das redes sociais confirma o que já se delineara com clareza: com a primazia do império do eu, ocorre a morte da singularidade e da diferença, o aniquilamento da possibilidade de cada um inscrever seu grão de loucura no mundo. No lugar, toma consistência uma espécie de delírio generalizado, escasso de força inventiva. O lugar onde a dimensão do sujeito pode se inscrever é, cada vez mais, o espaço embaralhado e difuso entre o real e o virtual.
Cabe formular, aqui, questões fundamentais trazidas pelo psicanalista Jacques Lacan ao terreno da ética, e como elas se desdobram em um tipo de escrita-inscrição de si que está entronizada no território voraz e totalizante da internet.
Com uma interrogação radical sobre “quem é o outro”, Lacan retorna ao estranhamento de Freud à máxima cristã: “Ama teu próximo como a ti mesmo”. Na lógica do inconsciente e da representação, o “eu” não coincide sequer com o “si mesmo”, quanto mais com o “outro”. Acontece que, nas redes sociais, todas as fronteiras se embaralham: há uma explosão sem precedentes e sem limites entre as dimensões do eu e do outro, do dentro e do fora, do real e do virtual. A sensação de estar imiscuído ao outro em uma lógica grupal – o perpétuo reforço narcísico entre likes e confirmações – delineia uma maneira de cifrar entranhada nos próprios corpos. Essa nova forma de atravessar a linguagem acaba, muitas vezes, por obliterar a alteridade e cria a ilusão de completude sem furos. Cabe ao discurso psicanalítico uma tomada de posição que possa resistir ao aniquilamento subjetivo e operar a subversão, proposta por Freud e retomada por Lacan – uma subversão que sustenta o “fora” do virtual, a presença do corpo que lembra que palavras não guardam correspondência exata com seus significados, que os sentidos não nascem prontos e são formas de ficção. Em um mundo imerso quase totalmente no espaço virtual, no excesso de informação e em uma espécie de loucura estéril e homogeneizante, é preciso retomar a dimensão do delírio, na contramão da palavra que se dá no senso comum, encontrar outra forma de delirar onde a diferença funda o comum.
Freud abordou o delírio como tentativa de cura e, para além de uma psicopatologia, inseriu aí a dimensão de uma invenção em que caibam sonhos, chistes, atos-falhos e a possibilidade de ficcionalizar. A psicanálise acredita na espessura e na densidade da palavra, revira a imagem por dentro de modo a encontrar alguma ressonância crítica, aquilo que há de incontornável no humano. O pensamento de manada não suporta o dissenso, mas a psicanálise, como possibilidade viva de crítica da cultura, pode instalar complexidades diante da simplificação da existência com fórmulas prontas e maquinais.
O filósofo, crítico e historiador de arte, Georges Didi-Huberman – leitor de Lacan – pensou a dimensão da ficção a partir da arte como espaço aberto ao “delírio que é cura” e, também, os traços da cultura como sintomas de um tempo. A singularidade do sujeito na psicanálise se coloca no centro da operação artística que segue interrogando o presente. Apostar na criação é refletir sobre a condição desejante frente à ausência de respostas dos objetos. Nas redes sociais, a resposta é dada de entrada pela via da identificação e do imaginário. Cabe à arte e à psicanálise, como lugares vivos onde se colhe os efeitos de sujeito, sustentar a dimensão da enunciação e as perguntas fundamentais para que não nos tornemos seres automatizados, robôs de nós mesmos.
Como testemunhar uma existência? Como fazer silêncio? Talvez seja preciso ainda buscar na poesia “a combustão interior do tempo” e, como em Herberto Helder, destrinchar “as máquinas resolutas de fabricar as formas rápidas e convulsas do esquecimento”, soletrar o impossível que ainda pode viver em cada gesto, em cada memória, em cada invenção demasiado humana onde a subjetividade possa acenar com seu tremor e a possibilidade viva e inquietante de sempre escapar, estar à deriva e escrever a história.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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