No último dia 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal 8.069 de 1990, completou 30 anos. Como documento legal destinado a todas as crianças e adolescentes, o ECA tornou-se um marco histórico, muito em razão da intensa colaboração da sociedade civil em sua construção, chegando-se a dizer que foi escrito a várias mãos. Talvez a legislação estatutária seja o maior exemplo da potência da participação da sociedade civil na garantia dos direitos humanos em nosso país.
Foi a Constituição da República de 1988 que reconheceu crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. E, foi a partir daquele momento, que Estado, família e sociedade receberam a responsabilidade de efetivar e garantir todos os direitos a essa parcela da população.
Além disso, ressalta-se o fato de que há expressa menção na Constituição sobre a prioridade absoluta destinada a essa parcela da população. Isso significa dizer que está constitucionalmente prevista a prioridade de crianças e adolescentes na construção e efetivação de todas as políticas públicas e sociais, inclusive devendo-se garantir destinação orçamentária privilegiada para tanto.
O ECA, publicado 2 anos após a Constituição, veio para concretizar o que o legislador constituinte colocou em nossa carta política. Como legislação completa que é, o ECA refere-se a todos os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e mais alguns direitos específicos, por estarem em uma situação peculiar de desenvolvimento. Em resumo, o estatuto surge como um rompimento de paradigmas ao que estava colocado até então.
As crianças e adolescentes brasileiros tiveram, até a Constituição da República de 1988 e a edição do ECA, muitos de seus direitos violados. Nunca é demais lembrar dos tempos das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs), locais onde crianças e adolescentes eram vítimas do descaso do poder público e eram torturadas, ameaçadas, enfim, violadas das mais diversas formas.
Esse tempo, que esperávamos que tivesse acabado com a publicação da Constituição e com a edição do ECA, infelizmente, ainda não acabou, vigorando uma cultura institucional ainda muito pautada nas antigas práticas violentas e estigmatizantes.
Se, por um lado, temos que comemorar a edição do ECA como marco histórico na garantia de direitos de crianças e adolescentes, por outro, temos muitos desafios para efetivar essa legislação. Olhando para o caso de adolescentes privados de liberdade e que passaram pelo sistema de justiça juvenil, vemos que ele ainda é bastante marcado por uma cultura menorista, a qual nos remete aos tempos das FEBEMs. Isso significa dizer temos unidades de internação superlotadas, com carência de recursos e ausência de materiais de higiene e acesso à profissionais de saúde. Considerando que estamos em meio a uma pandemia, a ausência de efetivação dos direitos dessa parcela da população fica ainda mais comprometida.
Conforme expus na última coluna, a pandemia tem afetado sobremaneira os sistemas de privação de liberdade, muitas vezes retirando o conteúdo educativo das medidas, que permanecem como simples e pura privação de liberdade. De acordo os últimos dados publicados no dia 29 de julho pelo Conselho Nacional de Justiça, temos o registro de 627 adolescentes privados de liberdade com a Covid-19, com zero óbitos registrados até o momento. Em relação aos servidores do sistema, o caso é muito mais grave: são 1.793 casos confirmados e 16 mortes registradas.
Parece que a tragédia da Covid-19 não tem data para acabar, sobretudo nos sistemas de privação de liberdade. Contudo, no dia 09 de julho de 2020, nove Deputados Federais de diferentes partidos protocolaram o Projeto de Lei nº 3.668/2020, com o objetivo de regulamentar a manutenção do conjunto de princípios que envolvem o Sistema Socioeducativo durante o período da grave crise sanitária causada pela Covid-19.
Foram eles: Alexandre Padilha (PT-SP), Carmen Zanotto (CIDADANIA-SC), Eduardo Barbosa (PSDB-MG), Leandre Dal Ponte (PV-PR), Marcelo Freixo (PSOL-RJ), Tabata Amaral (PDT-SP), Valmir Assunção (PT-BA), Fábio Trad (PSD-MS) e João H. Campos (PSB-PE).
Entre as medidas para fazer frente a esses problemas, estão 1. A criação de Planos Emergenciais e a adoção de medidas de higiene; 2. A reavaliação de medidas de internação de adolescentes vulneráveis ao contágio; 3. A adoção de Centrais da Vagas para regular a entrada e saída de adolescentes, como forma de combate à superlotação; e 4. A manutenção das fiscalizações externas, sobretudo no caso de denúncias de violação de direitos.
O Projeto de Lei 3.668/2020 apresenta-se como passo importante efetuado pelo Poder Legislativo para efetivar a garantia dos direitos de crianças e adolescentes nesse momento de pandemia, já que os executivos estaduais e os atores do sistema de justiça, em alguns casos, parecem se furtar de fazê-lo.
O projeto indica ações de contingência e medidas preventivas a serem adotadas no Sistema Socioeducativo brasileiro para que o vírus não se propague ainda mais e atinja mais adolescentes e servidores.
Ao que parece, os membros do Poder Legislativo federal deixaram de lado questões político-partidárias para pensar em uma parcela da população que tem seus direitos ainda mais mitigados em razão da pandemia, honrando o compromisso constitucional da prioridade absoluta e da proteção integral devida a esses e essas adolescentes que, antes e muito além de serem autores de atos infracionais, são sujeitos de direitos, atingidos por múltiplas violações até receberem atenção estatal.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Mariana Chies
É socióloga e advogada. Pesquisadora de pós-doutorado do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), é coordenadora-chefe do Departamento de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).