O Brexit faz parte dos assuntos internacionais importantes que a tragédia planetária da pandemia deslocou para o segundo plano. Não só no Brasil, como na própria União Europeia (UE) e até mesmo no Reino Unido (RU). Há quem acuse o primeiro-ministro Boris Johnson de se servir da crise gerada pela epidemia para manipular os efeitos do Brexit, tanto como no sentido negativo como no positivo.
Do lado negativo, Sylvie Bermann, ex-embaixadora francesa em Londres de 2014 a 2017, diz em seu livro recém publicado “Goodbye Britannia”, que Boris Johnson esconde a fatura econômica do Brexit “debaixo do tapete da Covid”.
No sentido positivo, o “tapete da Covid” serviu para o governo britânico ressaltar o sucesso do programa de vacinação de sua população de 66 milhões de habitantes frente aos atrasos de medidas similares introduzidas na UE.
Composta de 27 países e de 447 milhões habitantes, a UE expôs seus entraves burocráticos na implementação de uma política coordenada de medidas contra a Covid. Mesmo o cotidiano parisiense Le Monde, notoriamente pró-europeu, sublinhou que as instâncias europeias estão “mal equipadas para uma emergência sanitária desta magnitude”.
Mas a realidade é mais complexa. A porcentagem de habitantes que tomaram as duas doses da vacina é mais alta em alguns países europeus do que no RU e, obviamente, a população europeia é várias vezes maior do que a do RU. No final das contas, desde o final de dezembro de 2020, a proporção de mortos pela Covid em cada 100 mil habitantes é menor na UE do que no RU ou nos Estados Unidos, como mostra o comparador do Financial Times.
Embora os efeitos da saída do RU sejam ainda difíceis de serem medidos por causa do pouco tempo decorrido, o tabloide londrino “The Daily Mirror”, próximo do Labour, publicou no final de fevereiro, segundo mês da entrada em vigor do Brexit, um balanço da ruptura no cotidiano dos britânicos.
Afora os problemas previsíveis (crise na fronteira entre as duas Irlandas, mesquinharias entre diplomatas das duas partes) ou subestimados (queda da exportação do pescado britânico para a UE, embaraços no comércio online e no frete caminhoneiro), há um ponto que surpreendeu os observadores: a rápida transformação do mercado acionário com a ascensão da Bolsa de Amsterdam para o primeiro lugar europeu, em detrimento de Londres.
Assim, no mês passado, a Bolsa neerlandesa movimentou 9,2 bilhões de euros diariamente, comparados à média diária de 8,6 bilhões na Bolsa de Londres. Como notou o diário francês “Le Figaro”, trata-se de uma revanche da história, na medida em que a Bolsa de Amsterdam é a praça financeira mais antiga do mundo, fundada em 1602, quando os Países Baixos eram uma grande potência comercial e marítima.
As praças de Frankfurt e de Paris também se beneficiaram, numa menor medida, das transferências de transações acionárias operadas em Londres. Na verdade, o tratado do Brexit concerne principalmente o comércio. A City e o conjunto dos serviços financeiros, incluindo os gabinetes atinentes de auditoria e de advocacia, maior trunfo da economia britânica, ficaram de fora do acordo concluído na véspera de Natal.
As negociações prosseguem entre as duas partes, mas a UE está determinada a atrair uma parte das atividades financeiras londrinas para as praças do continente. Numa declaração à BBC, Dominique Raab, ministro do exterior britânico, minimizou os riscos representados pelas praças europeias, afirmando que a maior ameaça à posição de Londres como centro financeiro global virá de Nova York ou de Tóquio.
Resta que a UE é a maior cliente dos serviços londrinos e que a redução do acesso da City ao mercado financeiro europeu prejudicará o Reino Unido. Sobretudo porque a nova administração Biden limitou a esperança que Boris Johnson nutria de obter dos Estados Unidos uma parceria econômica apta a substituir a UE.
Era isso que Trump, apoiador entusiasta do Brexit, havia prometido ao primeiro ministro britânico, garantindo que acordo comercial interviria rapidamente entre os dois países. Boris Johnson esperou, até o final da presidência Trump, que as negociações comerciais entre Londres e Washington, iniciadas em 2018, tomassem corpo. Em vão.
No último dia 25 de fevereiro, na audiência no Senado sobre sua nomeação no cargo de ministra do Comércio dos EUA, Katherine Tai declarou que as negociações comerciais com o governo britânico seriam revistas, alegando que muita coisa mudara desde 2018 e que a prioridade agora era derrotar a Covid. A notícia foi mal recebida em Londres, tornando ainda mais problemática a tarefa do governo britânico no contexto pós-Brexit. Boris Johnson será uma vítima tardia da derrota de Trump?
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Felipe de Alencastro
É historiador e cientista político, professor da Escola de Economia de São Paulo da FGV e professor emérito da Sorbonne Université.
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