As palavras importam. Elas não apenas comunicam ideias, descrevem fatos e conceitos, mas carregam consigo um universo de intenções e uma visão de mundo. A linguagem possui um papel performativo, é responsável por moldar a realidade e a percepção das pessoas de forma muitas vezes não revelada (ou mesmo percebida) pelo interlocutor.
No debate econômico, cada termo utilizado esconde um conjunto de valores e pressupostos que podem variar no tempo e no espaço, mas que a cada momento precisam ser revelados para os termos serem plenamente compreendidos.
Durante a década de 1980 e início dos anos 1990, o termo que mais se ouvia no debate econômico era “plano”. A cada novo ministro da fazenda, um novo plano econômico que prometia findar a inflação e recuperar o caminho perdido do crescimento econômico.
Tivemos o Plano Cruzado, o Plano Bresser, o Plano Verão, o Plano Collor. Apesar de diferentes entre si, todos os planos tinham importantes elementos em comum: partiam de um diagnóstico de que a inflação brasileira era um caso “particular” que não poderia ser extinta através de remédios “comuns” e que sua superação era a chave para a adoção de uma nova estratégia de desenvolvimento, diferente da verificada no período militar.
A saga dos planos só teve fim com o sucesso do Plano Real na contenção da inflação em 1994. Apesar do Plano Real ter sido suficiente para eleger e reeleger FHC, ele se provou insuficiente para angariar apoio popular à estratégia de desenvolvimento “neoliberal” que marcou o período.
O elevado desemprego, a desestruturação do parque produtivo, a estagnação na renda e nos indicadores sociais levaram o país a abandonar a nostalgia dos planos e adentrar em uma nova fase do léxico econômico.
A era dos programas econômicos
Na década de 2000, em particular nos governos petistas, o termo em voga era “programa”. Havia o Programa Bolsa Família (PBF), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Programa Luz para todos, o Programa Universidade para Todos (PROUNI) etc.
Cada programa era voltado para um tema específico, mas todos tinham uma visão compartilhada: a centralidade da ação do Estado no processo de desenvolvimento econômico e inclusão social. A maioria desses programas foi muito bem avaliado pela população, gerando uma espécie de marca dos governos do PT responsável por garantir a vitória de 4 eleições presidenciais consecutivas.
Com a crise política, social e econômica iniciada em 2015, os programas do período petista passam a ser questionados e revistos, em particular sob a alegação de falta de recursos e ineficiências. A aprovação do impeachment em 2016 marca o fim da era dos programas e do Estado como promotor e coordenador do desenvolvimento, inaugurando-se uma nova estratégia de desenvolvimento que recuperava boa parte da agenda neoliberal dos anos 90.
O novo período das reformas
A partir de então, a sociedade brasileira tem sido bombardeada com o termo “reformas”. Na realidade esse termo não é novidade, já que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 se discutem algumas reformas constitucionais.
No entanto, a palavra reforma nunca apareceu de forma tão insistente no debate econômico como agora. Reforma fiscal, Reforma Trabalhista, Reforma Previdenciária, Reforma Administrativa, Reforma Tributária, reforma das políticas sociais etc. Temos reformas para todos os gostos, de todos os tipos e tamanhos. Da mesma forma que os planos, cada reforma promete reverter a trajetória de depressão que a economia brasileira adentrou a partir de 2015 e sinaliza para uma nova fase de crescimento e prosperidade.
Para um leigo, o termo reforma faz todo sentido. Em um país onde quase tudo está quebrado, em particular o bolso trabalhador e do pequeno empresário, uma reforma parece vir a calhar. O reverso do ditado “em time que está ganhando não se mexe” parece ser verdadeiro: em time que está perdendo, mudar é fundamental. Se a casa está caindo, é preciso reformá-la!
Mas no debate econômico, qual o real conteúdo do termo reforma? A questão que se coloca é desvendar qual é o objetivo das reformas, descobrir quais valores e visão de mundo esse conjunto de mudanças propostas tem em comum, para enfim desvelar seu real significado.
De todas as reformas acima citadas, ao menos três já foram plenamente implementadas: a Reforma Fiscal (com a adoção do “teto de gastos”), a Reforma Trabalhista e, já no governo Bolsonaro, a Reforma da Previdência. Todas compartilham de um mesmo diagnóstico e prognóstico: o problema estaria na Constituição Federal, que seria “audaciosa” e muito benevolente com trabalhadores e pobres. A solução estaria em “reformar” a Constituição até que ela, na prática, se apresente como um projeto de nação bastante diferente da original.
A Reforma Administrativa e as políticas sociais
Nos últimos meses, o tema da Reforma Administrativa e da reforma das políticas sociais (através da chamada “Renda Brasil”) ganhou força. Caminhando na mesma linha das reformas anteriores, o objetivo da reforma administrativa (e da chamada PEC emergencial, que se propõe a reduzir salários de funcionários públicos como professores, médicos, enfermeiras, mas não militares) apresentada pelo governo é o de reduzir o tamanho do Estado no longo prazo, além de centralizar na Presidência o poder de demitir funcionários públicos federais concursados.
Obviamente que estes objetivos atentam contra o espírito da Constituição Federal de 1988, que foi pensada para um quadro de servidores públicos de Estado qualificados e protegidos em suas funções contra as idiossincrasias políticas dos governos de plantão. Ao flertar com a o fim da estabilidade e não com critérios de avaliação mais adequados e rigorosos, o governo deixa claro que seu objetivo não é aumentar a eficiência do serviço público, mas sim colocá-lo sob seu controle político e abrir espaço para sua redução.
No caso da reforma dos programas sociais, os anúncios da equipe econômica, corroborados pelo Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, apontam para a extinção de programas sociais voltados para trabalhadores pobres, como o abono salarial e o seguro defeso, com o objetivo de angariar recursos para a ampliação de um benefício contra a pobreza. É uma espécie de complemento da reforma trabalhista e previdenciária, onde a proteção ao trabalhador sai de cena e o que resta é apenas uma frágil proteção contra a miséria.
Todas essas reformas encimadas pelo chamado “teto dos gastos”, que obriga a redução do Estado nas próximas décadas a um tamanho incompatível com a garantia dos direitos sociais, revelam uma estratégia econômica “ultraliberal”, que entra em conflito direto com o espírito da Constituição Federal de 1988. Não se trata, pois, de reformar a Constituição, mas de destruir a antiga e construir uma nova, mais compacta e com menos direitos sociais e trabalhistas.
É provável que essa estratégia fracasse, como já vem fracassando desde 2016, quando começou a ser implementada em sua totalidade. Caso esse cenário se confirme, resta saber qual será o termo econômico que irá suceder as tão maltratadas reformas, muitas necessárias, mas não da forma proposta, no debate público brasileiro.
Deixo uma sugestão: que tal retomarmos o quase esquecido termo “desenvolvimento”, pensado como transformação da estrutura produtiva e social, para embasar os futuros debates acerca das estratégias econômicas de nosso país? Estou convencido que os valores de sociedade e a visão de futuro que esse termo representa se alinham muito mais com a Constituição Federal e com o desejo do nosso povo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Mello
É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.
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