A primeira vez que Maradona, o aniversariante do dia 30 de outubro, jogou no Maracanã foi na Copa América de 1979. Naquela ocasião, com 18 anos de idade, Diego usou a camisa número 6 pelo selecionado argentino, em um jogo que terminou com a vitória do Brasil por 2 a 1. Zico e Tita marcaram os gols brasileiros e Hugo Coscia marcou para a Argentina.
Dez anos depois, em 1989, de novo durante a disputa da Copa América, Maradona jogou no Maracanã com a camisa argentina, mas trajando o número 10, que lhe caía com a naturalidade de segunda pele. Já era ali o craque consagrado que levou a Argentina ao título mundial de 1986 com atuações sublimes, em especial no jogo das quartas de final contra a Inglaterra. Naquela partida, marcada pela rivalidade entre os dois países apimentada pela Guerra das Malvinas, de 1982, Maradona marcou dois gols. Um deles, com a mão. O outro, com o pé esquerdo.
No fuzuê que se estabeleceu ao final do jogo, indagado sobre a irregularidade do gol de mão, o craque respondeu aos jornalistas: “Lo marqué un poco con la cabeza y un poco con la mano de Dios”. O outro gol é provavelmente o mais bonito da história das Copas do Mundo. Maradona colou a bola no pé esquerdo e, como um azougue, driblou meio time da Inglaterra, antes de rolar para o gol vazio.
Naquele jogo da Copa América de 1989, pelo quadrangular final do torneio (com todos os jogos disputados no Maracanã), a Argentina corria atrás do resultado depois de ter sido derrotada pelo Brasil, que acabou sagrando-se campeão do certame. Aos 33 minutos do primeiro tempo, Maradona matou uma bola na coxa na altura do círculo central, já no campo de ataque, e bateu de canhota contra o gol do arqueiro Zeola. A bola explodiu no travessão.
A reação imediata dos torcedores brasileiros (o jogo era a preliminar de Brasil X Paraguai) foi a de aplaudir o argentino, enquanto Maradona socava o gramado, inconformado. A Argentina acabou perdendo o jogo por 2 a 0.
Eu estava naquela noite no Maracanã e a impressão que tive, compartilhada com outros torcedores na arquibancada, misturou o assombro com a jogada inusitada e o lamento pelo gol que não ocorreu. A maneira como Maradona matou a bola e arrematou contra o arco uruguaio lançou-nos numa espécie de espiral do tempo. Ainda guardo nitidamente a sensação da bola voando, como se aquele lance de três segundos tivesse se desenrolado durante bons minutos.
Quando recebi a notícia da morte de Maradona, em novembro de 2020, lembrei-me do gol que não ocorreu na Copa América de 1989, no Maracanã, e dos dois gols do argentino contra a Inglaterra, na Copa de 1986. O futebol de Diego Armando Maradona, no fim das contas, foi um túmulo de ateus e uma elegia ao assombro. Para ele compus, na noite de sua despedida, este poema:
A Balada de Diego Maradona
O jogo veio sisudo das europas
De bolas altas, para altas copas
Mas aqui as plantas são rasteiras,
São outros os ziriguiduns e alaridos
E o passo de tango, e a ginga das capoeiras
Do deserto patagão às altas cordilheiras,
Transformou o jogo na vingança dos fodidos
A bola é uma dama cortês
Que baila com Diego Maradona
O tango da insônia do zagueiro inglês
Diante do artilheiro que, como galo de rinha,
Afronta o espaço, enlouquece a hora
Com as chuteiras entre nuvens e esporas
Ciscando o pesadelo da terra da rainha.
O diabo mora no meio do fogaréu
O anjo bate asas acima da fogueira
E se alimenta do calor da chama
Como se o inferno fosse a terra inteira
E o paraíso, entre o tango e a canção napolitana,
Fosse azul, não como o céu,
Mas como o chão da Bombonera
Tua alma, entre a álgebra e a lua rara,
É a América ébria de Gardel
Evita, Perón e Che Guevara
De milagres prenha e dos meninos rotos.
Teu futebol foi um túmulo de ateus:
Afinal como pode o pé de Exu canhoto
Viver no mesmo corpo da mão de Deus?
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Luiz Antonio Simas
É professor, escritor e compositor. Mestre em História do Brasil pela UFRJ, é autor e coautor de mais de 20 livros sobre o que costuma definir como o universo das culturas de rua: festas, religiosidades populares, futebol, música popular e carnaval. Ganhou, pelo Dicionário da História Social do Samba, em parceria com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro de Não Ficção do Ano, em 2016. Foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017, com o livro “Coisas Nossas” e em 2020, com “O Corpo Encantado das Ruas”. Tem mais de uma centena de artigos e textos publicados em jornais, revistas e livros sobre cultura popular brasileira. É jurado do Estandarte de Ouro, premiação mais importante do carnaval do Rio de Janeiro. Em 2020 lançou, em mais uma parceria com Nei Lopes, “Filosofias Africanas: uma introdução”.
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