O mais recente longa-metragem de ficção dirigido por Alexandre Aja e estrelado pela atriz francesa Mélanie Laurent, Oxygen (2021), tece uma trama apropriada ao atual contexto da pandemia covid-19. Ambientado no final deste século XXI, o roteiro de Christie LeBlanc descreve a agonia da personagem ao despertar e perceber-se enclausurada em uma câmara criogênica, atada a mecanismos hospitalares de monitoração e sem qualquer lembrança de sua identidade. A sombra da asfixia que turva os nossos dias é também o fio condutor do filme, pois Liz, a protagonista, tem que recobrar a memória e livrar-se do confinamento antes que se esgote o suprimento de oxigênio da cápsula. A partir daqui, maiores detalhes seria spoiler da película, lançada neste mês, mundialmente, pela Netflix.
Em uma das poucas sequências externas à câmara criogênica, cientistas de todo mundo debatem o futuro da humanidade, tendo por cenário um salão de arquitetura futurista. É surpreendente constatar que a locação escolhida pela produção do filme para ambientar esse plenário é nada menos do que o edifício-sede do Partido Comunista Francês, localizado em Paris, projetado pelo brasileiro Oscar Niemeyer no ano de 1967. Niemeyer, à época exilado na Europa em decorrência do Golpe de 1964, pôde projetar e construir em solo francês graças à intersecção de André Malraux, ministro da Cultura no governo de Charles De Gaulle, que lhe outorgou uma licença especial de trabalho.
É surpreendente constatar como a arquitetura modernista de Niemeyer cumpre ainda o papel de expressar o paradigma futurista, passados mais de 60 anos da inauguração de Brasília. Há uma evidente unidade estética entre o plenário do PCF, locação escolhida para a sequência do filme de Aja, o nosso Palácio do Congresso Nacional e a Assembleia Geral das Nações Unidas. Fruto do traço inconfundível de Niemeyer, os edifícios projetados entre as décadas de 1950 e 1960 são, no plano simbólico, indissociáveis da agenda política de reconstrução do pós-guerra: cumpriam a função de figuração plástica da utopia, cujo desiderato era extirpar da paisagem da memória o fantasma nazista mediante o novo concerto entre as nações, para que os seres humanos fossem poupados do terror da miséria, livres e iguais em dignidade e direitos.
No Brasil, nesse período, o projeto desenvolvimentista de JK propiciou o florescimento simultâneo de todas as artes: a música de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, o Cinema Novo, de Glauber Rocha, a nova dramaturgia brasileira, além das artes plásticas e da arquitetura. O presidente Bossa Nova propunha aos brasileiros um projeto nacional que prometia avançar cinquenta anos em cinco, com indústrias de base, investimento em transporte, produção de energia, educação e alimentação. O Golpe de 1964 operou o aborto da esperança de toda uma geração que vislumbrou, ao raiar de uma alvorada próxima, um país democrático, moderno, inclusivo e que se viu forçada, como Niemeyer, ao exílio para se proteger da truculência da ditadura militar.
A asfixia das liberdades cumpriria seu penoso curso ao longo de 21 anos, com reoxigenação lenta e gradual na década de 1980, até a eclosão do movimento popular pelas eleições diretas, a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, a posse de José Sarney na presidência da República e a instalação da Assembleia Constituinte em 1987. A Constituição de 1988 selaria o pacto político para a retomada do projeto nacional, com garantias fundamentais e uma agenda socioambiental para o desenvolvimento sustentável, pautada na preservação do meio ambiente e no respeito às populações tradicionais. Este pacto concluiria um ciclo de vícios e virtudes até a deposição de Dilma Rousseff da presidência da República, em 2015. Do ponto de vista simbólico, a extinção do Ministério da Cultura, uma das primeiras medidas de Michel Temer, resumiria mil palavras.
André Malraux quando esteve em visita às obras da nova capital, em 1959, denominou Brasília a Capital da Esperança. Em discurso na Aliança Francesa afirmou que, passado o holocausto, era necessário estabelecer um plano mundial de exploração das riquezas naturais em proveito apenas das nações que as detinham. As palavras do Ministro da Cultura francês, ditas há mais de 60 anos, afirmavam preocupação com nossas riquezas e com a soberania necessária para delas dispor em nosso benefício. Permanecem futuristas. A cena de Oxygen, rodada no plenário do PCF, nos colhe de assalto e instiga à busca do elo perdido entre o Brasil do futuro que nos foi prometido desde JK e este que aí está. Incapaz de organizar uma campanha nacional de vacinação, o que já seria um rudimento de projeto de nação, e indiferente à morte plenamente evitável de milhares de brasileiros em decorrência da covid-19.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Antonio Carlos Bigonha
É compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).
Leia também

Reinventando o Brasil pela arte
Continue lendo...
O Dedinho, a Ovelha e o Plágio Involuntário
Continue lendo...
A invisibilidade das mulheres na Independência do Brasil
Continue lendo...