Não faz muito tempo, há alguns meses atrás, enquanto corria o dedo no instagram como quem preenche os intervalos do dia, me deparei com um texto inusitado. Num desses grandes jornais, uma colunista expressava se sentir protegida e acolhida no museu, pois ali, “assim como nas livrarias, nas galerias e nos teatros”, ela não corria o risco de encontrar bolsonaristas e os ignorantes do governo[1]. Nos comentários do post, gente amiga, bonita e descolada concordava e aplaudia sem constrangimento.
Num primeiro impulso, tão veloz e imprudente quanto o consumo de informação nas redes, não era nada difícil concordar com ela. Somos tomados por certo alívio quando constatamos que existem lugares respiráveis, espécies de oásis temporários que nos suspendem da barbárie do real. Não é mesmo raro ouvir esse tipo de coisa por aí; o papo que tende a enredar a “cultura” numa névoa de superioridade, devidamente apartada dos meros mortais. É como se acompanhar a Bienal de São Paulo, ler os últimos romances publicados e comentar os filmes do Festival de Veneza automaticamente nos emitisse um passaporte da sensibilidade singular – e vitalícia. Daí, somos os verdadeiros detentores das soluções para as crises do mundo, e os problemas e contradições estão sempre nos outros, então nos resta lavar as mãos.
Mas quando o assunto é o papel dos museus, esse tipo de compreensão deve ter limites. Afinal, criamos instituições culturais para quem? E com que finalidade? É digno de comemoração que nossas instituições culturais estejam definidas por um perfil de público-bolha? Se o maior museu do Brasil não corre o risco de ser frequentado por “ignorantes”, ele está realmente tendo êxito? Há muitas respostas para essas perguntas, mas resta algo que gostaria de defender: um museu-bolha é um museu que ainda não experimentou toda a sua potência, porque o museu é, ou deveria ser, um espaço de negociação das diferenças, âmbito democrático por excelência.

Jannis Kounellis, sem título
E o que os museus têm a ver com a diferença? O modelo de museu moderno atravessou o século XX empenhando-se em controlar as narrativas sobre o Outro. Linear, evolutiva e fetichizante, a história erigida por essas instituições foi, em suma, aquela que fixou o museu como detentor e legislador do conhecimento, depositário do gosto ideal, distinto e refinado das elites. O Outro figurava como objeto – era matéria de representação, alegorização, inspiração, comparação; raramente sujeito. É a tal perspectiva paternalista que segue compondo o imaginário de muita gente até hoje: pensa-se que o museu tem por função promover “acessibilidade” a determinados saberes superiores. Você, ignorante, é bem-vindo, sim, desde que esteja disposto a assimilar os nossos códigos, isto é, educar-se com as nossas ferramentas. Daí decorrem os inúmeros seminários, simpósios e mesas redondas anuais que buscam dissecar o problema da “falta de público” dessas instituições. Elas costumam ser mais repelentes do que atraentes.
Com a virada neoliberal dos anos 1980, o problema da participação assumiu falsas soluções. O modelo museu-empresa investiu em saídas espetaculares, aproximando a prática artística da esfera do consumo (não há nada mais neoliberal do que a premissa da “criatividade”). Se os números de visitantes alcançaram recordes nunca antes vistos, também se reforçou o lugar da arte enquanto capital financeiro e cognitivo, o mercado dominou o sistema de valores e a disseminação veloz e exponencial da informação pôs em crise os regimes de atenção e apreensão do sentido. Tornou-se difícil forjar narrativas coletivas, comuns. A precariedade se enraizou não apenas nas condições laborais, mas também nos modelos de financiamento, o que tornou o museu refém de agentes alheios ao seu programa e, por consequência, menos dotado de potencial crítico.
Além disso, mais recentemente, a “diferença” entrou na moda. Pautas em torno do binômio identidade/alteridade passaram a ser tema de inúmeras mostras e revisões, mas até agora pouco mexeram na espinha dorsal das instituições e seus cargos de poder. Em geral, o hype da diferença produz um senso de inclusão e representatividade que está longe de refletir a lógica estrutural dos lugares que produzem tais enunciados. O que seria, portanto, à luz de tantas ambiguidades, reivindicar o museu como espaço de negociação da diferença? É difícil vislumbrar paisagens cristalinas, mas podemos acercar o problema mais de perto.

Jannis Kounellis, sem título 2
De antemão, podemos considerar que negociar as diferenças não é pasteurizá-las – fazer o Outro caber numa estrutura que já está desenhada, sob o questionável jugo da “inclusão”, cujo preço é uma espécie de conversão e formatação da alteridade. Também não se trata de atuar segundo a fantasia de que seria possível reunir tudo num mesmo lugar. A “negociação das diferenças” é um campo de disputa em torno da construção de sentidos simbólicos.
É o museu com a vocação de praça, arena, ágora, laboratório de experimentação das relações sociais, lugar onde podemos refletir sobre quem somos e imaginar e projetar quem queremos ser. Eis o que um museu pode fazer de melhor: desafiar nossos pressupostos, estimular o debate franco, ser um espaço que desenvolve formas experimentais e abertas de conhecimento, que estima a colaboração intercultural. Falamos de um museu que não reitera um punhado de saberes, mas transforma, a partir do encontro, o que já sabemos. Que nos liberta do peso de certas verdades, a fim de que deixemos de ser o que temos sido em busca de outra coisa, ainda informe, como a própria matéria da arte. Para isso, porém, é preciso aprender a sustentar o conflito e operar no dissenso, investigar os acordos estabelecidos não apenas entre sujeitos, objetos e narrativas, mas entre passado, presente e futuro: um tráfego delicado entre memória e imaginação.
Se aqueles que não estão familiarizados com o ambiente museal (todos nós sabemos o quão distante e desinteressante um museu pode ser, do preço da entrada ao imperativo silencioso do “não toque”) não virão espontaneamente, o museu pode ir além de seus limites físicos. A instituição tem potencial para caminhar – pôr os dois pés na rua e nos meios digitais. Além dos programas intramuros, nos cabe perguntar de que modo o museu pode colaborar com a construção e o fortalecimento de laços do ecossistema ao seu redor. Como aproximar museus e ecologia? Como narrar histórias a partir do compromisso e do engajamento com a comunidade local, desconfiando continuamente das hegemonias que o próprio museu institui?
Os desafios que tal postura ética implica são inúmeros, a começar pelo fato de que este é um tempo de guerras culturais declaradas, e nossas próprias instituições se encontram atravessadas por um programa de destruição operado pelas instâncias federais[2]. Dialogar com o Outro, portanto, implica imaginar formatos atentos à fragilidade democrática do presente. No âmbito cultural, criticar e cuidar não são ações antagônicas, mas complementares.
Por fim, é também no museu que podemos reivindicar a prática artística como campo de experimentação de um signo em aberto que opera na via inversa da linguagem viciada do fanatismo e da lacração (embora não seja raro vermos cada vez mais o contrário – a consonância entre arte e cartilha). Diante das capturas apressadas de sentido, aquelas formadas na velocidade da informação e sob o jugo de narrativas soberanas e binarizadas, o museu pode ser um lugar de oxigenação do imaginário. Frente a sensação de certa letargia e incapacidade de produzir saídas para as inúmeras catástrofes que atravessam o presente, ainda interessa reivindicar o museu como laboratório profícuo de elaboração de nossas utopias e heterotopias. Disputemos os museus, sim, para garantir a insurreição dos nossos sonhos, para não nos assujeitarmos ao fracasso ininterrupto do agora. Mas que lá seja possível, sobretudo, encontrar qualquer um.
[1]Ironicamente, os conselhos das maiores instituições culturais do país são formados, ao contrário da afirmação da autora, por pessoas notadamente simpáticas ao atual governo, o que diz muito sobre as contradições do fantástico mundo da arte, bem como os limites de argumentação desse próprio texto.
[2]Para refrescar a memória do leitor, são muitos os exemplos da guerra cultural de Bolsonaro, cuja estratégia é exercer uma espécie de trollagem com o terceiro setor. Um racista foi nomeado para gerir a Fundação Zumbi dos Palmares; uma “blogueira” está à frente do IPHAN, uma roteirista da TV Record coordena hoje a Fundação Casa de Rui Barbosa, entre outros casos constrangedores.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Pollyana Quintella
É pesquisadora, curadora e crítica cultural. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ e doutoranda pela mesma instituição. Colabora com o Museu de Arte do Rio (MAR) desde 2018 na área de pesquisa e curadoria e escreve regularmente para diversos jornais e revistas de cultura.
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