O Ministério de Damares e as diferentes formas de exercer a fé – IREE

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O Ministério de Damares e as diferentes formas de exercer a fé

Letícia Chagas

Letícia Chagas
Liderança do Movimento Estudantil



Quando ouço os discursos da ministra Damares Alves sobre aborto, eles não soam para mim como novidade. Enquanto pastora, seus discursos são bastante semelhantes à doutrina evangélica que sempre esteve muito presente em minha vida, não só porque minha família é predominantemente cristã como também porque sou uma jovem moradora de periferia.

Como diz minha mãe, em nosso bairro faltam escolas de qualidade, não tem posto de saúde e nem praças, mas em cada rua é possível encontrar duas coisas: um bar e uma Igreja. Foi a Igreja evangélica que deteve influências sobre nossas vidas.

Frequentei-as desde pequena até os 15 anos de idade. Nessa época, comecei a ter acesso à discussões sobre feminismo, me aproximando da luta pela legalização do aborto. Mesmo estando na Igreja, o debate sobre o aborto não pareceu tão complexo assim para mim. Entendi que ele não diz respeito ao que acho sobre o aborto em si – isso, na verdade, pouco importa -, mas sim ao direito de que mulheres não sejam criminalizadas ou mortas ao realizarem um aborto ilegal e inseguro.

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Mas, assim como Damares, o líder de minha Igreja era contra a legalização do aborto. Em uma aula da escola bíblica sobre os Dez Mandamentos, ele afirmou que as mulheres que abortavam cometiam uma violação à prescrição bíblica “não matarás” e que, por isso, deveríamos lutar contra a legalização dessa prática. Sem pensar muito, levantei a mão e falei que discordava daquilo: ainda que pudéssemos não concordar com a prática do aborto, mulheres morriam por não terem direito a fazer um aborto seguro. A partir daí, parei de ir à Igreja.

Para mim, uma das frases mais memoráveis desse dia foi quando o pastor, após minha fala, se reportou à minha mãe na frente de toda Igreja, dizendo que era por isso que ele preferia que seus filhos não passassem muito tempo lendo e nem que fizessem faculdade pública. Era como se estudar fizesse com que eles questionassem a doutrina evangélica e que, automaticamente, se afastassem de Deus. Para ser cristão de verdade, era necessário aceitar tudo o que ele, enquanto líder religioso, dissesse. A dúvida e o questionamento eram tidos como uma “semente do diabo”.

Em um contexto como esse, o líder religioso se torna o responsável pelo monopólio de toda a informação que recebem os fiéis. Há em diversas Igrejas, portanto, um verdadeiro incentivo à desinformação. E isso é especialmente hostil quando estamos falando da influência que elas exercem sobre as periferias. Não raro, atuam como mais um fator que nos separa da universidade, já que esta é vista como algo maligno, responsável por afastar os jovens da Igreja. Além disso, a influência desses líderes faz com que cristãos pensem que só há um jeito de se exercer a fé: o jeito conservador e reacionário de que pregam. Mas isso não é verdade.

Quando ouço Damares, me lembro dessa minha experiência ao frequentar a Igreja evangélica. A ministra, que foi pastora por muitos anos, sabe utilizar a retórica aprendida nos púlpitos para parecer pragmática e sincera ao mesmo tempo em que é responsável por uma política bastante hostil. Sua atuação no caso da menina de 10 anos que engravidou vítima de um estupro demonstra isso muito bem. Damares tentou impedir que essa criança tivesse resguardado seu direito ao aborto legal, valendo-se de suas convicções religiosas, como se todo cristão à frente do Ministério devesse ter agido da mesma forma.

Embora hoje sejam cristãos como Damares que estejam participando do governo federal e ganhando notoriedade, essa não é a única forma de exercer a fé. Enquanto Damares é uma das ministras mais bem avaliadas do governo Bolsonaro, cristãos progressistas, como o padre Júlio Lancellotti, têm sido perseguidos por defenderem uma mínima dignidade àqueles que mais precisam.

Há um tempo, aprendi que cristãos deveriam agir sempre pensando com base no que Jesus faria se estivesse em seu lugar. Tenho grandes dificuldades em pensar que Jesus conduziria o caso da criança de 10 anos da forma como o fez Damares, ou que apoiaria um governo como o de Bolsonaro. Apesar de sua boa retórica – talvez uma das melhores do governo Bolsonaro – o Ministério de Damares parece estar cada vez mais distante de Jesus.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Letícia Chagas

Graduanda em Direito na USP, foi a primeira presidente negra do Centro Acadêmico XI de Agosto (2020-2021) e pesquisadora do Programa de Educação Tutorial (PET) Sociologia Jurídica. Atualmente, é coordenadora de pesquisa do Grupo de Pesquisa e Estudos de Inclusão na Academia (GPEIA).

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