De um só golpe acompanhamos, nos últimos dias, com horror e indignação, acontecimentos que reafirmam o estado de degradação simbólica perpetrado pelo machismo estrutural que ganha contornos cada vez mais densos e nítidos: uma criança é estuprada e, ao invés de ser acolhida, é praticamente torturada pelas instâncias que deveriam ampará-la na defesa e garantia de seus direitos; uma jovem atriz é duplamente violentada pela brutalidade sádica e perversa de pessoas que expuseram sua intimidade de maneira criminosa.
A gravidade desses acontecimentos é reflexo de um ataque sistemático ao direito de liberdade do corpo feminino. A tentativa de assujeitamento das mulheres não é algo novo, o que se apresenta de forma nova é a obscenidade, sem nenhum véu, da reafirmação do machismo que atravessa os tempos.
Na história da arte não é diferente e é importante que seja feita uma revisão crítica do lugar dos trabalhos de mulheres e é com um gesto profundamente ético que o Instituto Tomie Ohtake realiza duas exposições urgentes e necessárias, de grande força poética e política.
Com curadoria de Priscyla Gomes, a exposição “Por muito tempo acreditei ter sonhado que era livre” (em cartaz até 17 de julho de 2022, com obras de 27 artistas) reúne diferentes gerações que refletem acerca do corpo feminino como território discursivo e, com fino apuro, coloca em diálogo diversas epistemologias. O título da exposição faz referência a um trabalho de Maria Martins, escultora mineira que obteve reconhecimento tardio pela crítica de arte brasileira. Como assinalado pela curadora, a obra em questão, uma escultura em bronze produzida em 1947, foi instalada em um lago e destruída pelas intempéries e pelo descaso. O bronze condensava uma das principais investigações da artista acerca das relações entre a feminilidade, a sexualidade e as especificidades de se viver nos trópicos. A condição feminina e as tentativas de cerceamento desse corpo indomesticável se apresentam de maneiras diversas numa exposição visceral e convulsiva.
A outra exposição – “Anna Maria Maiolino – psssiiiuuu…” (em cartaz até 24 de julho de 2022, com cerca de 300 obras) – uma extraordinária mostra com curadoria de Paulo Miyada – apresenta pinturas, desenhos, xilogravuras, esculturas, fotografias, filmes, vídeos, peças de áudio e instalações que condensam vida, biografia e desejo, reunindo gestos de uma mulher de múltiplos papéis – filha, artista, mãe, cidadã, mulher, amante, escritora, latino-americana, europeia e imigrante. A artista sustenta na linha fina do tempo sua linguagem e subjetividade através de temas que tocam questões da maternidade, sexualidade, políticas migratórias numa relação arte e vida absolutamente singular. Suas práticas carregam noções centrais de subjetividade, pertencimento e lugar. A identidade como um constante fluxo e forte interesse político se apresenta de formas diversas, seja na busca por justiça de mães argentinas à procura de seus filhos durante a ditadura militar, seja nas materialidades e gestos de uma prática visual e escultural fortemente ancorada na escala do corpo.
Anna Maria Maiolino refunda uma cartografia como em “Por um fio” da série “Fotopoemação”, no qual um barbante une a artista, pela boca, à sua mãe e à sua filha, reforçando uma presença corporal e ancestral que marca a sua obra. Na insistência e da repetição de gestos, especialmente no acúmulo, ela recoloca em jogo nossos laços com os objetos e redesenha as linhas de força que dispõem um mundo. Em “Entrevidas”, realizada em 1981, somos convidados a caminhar sobre um terreno minado e fazer, da vulnerabilidade, uma potência poética.
A força feminista não se apresenta de maneira direta ou panfletária, mas através de uma linguagem baseada na corporalidade e numa errância própria de uma história que a fez percorrer espaços geográficos diversos. A artista deixa pistas desses percursos na materialização da sua obra. A condição de exílio com a saída da Calábria aos doze anos de idade, forçada pela escassez alimentar vivida na Itália no pós guerra, à chegada ao Rio de Janeiro em 1960, aos dezoito anos, são fatos que datam e demarcam situações importantes para a constituição da obra que conjuga linguagens hibridizadas que vão se incorporando e fecundando trabalhos irrigados pelas questões pujantes que envolveram sua relação arte/vida.
Suas percepções com a alteridade foram incorporadas na construção de uma poética própria que abarca a condição sempre ativada pela diferença. Seu trabalho artístico está intensamente ligado com o processo de trânsito contínuo e a condição de “andante”: o corpo, o movimento, a relação do visual com outros sentidos, as diversas materialidades. A forma sinuosa com que refunda relações ordinárias trazem o primordial da vida para a discussão artística.
Seu corpo inundado pelo gesto remodela o mundo, sua mão refaz, molda, estica, corta, engrossa ou encurta. A pulsão se esparrama por uma inédita exposição antológica que revela forma e matéria à beira do abismo. Na vertigem desse abismo, a artista – mãe, filha, imigrante, exilada e tantas outras – perfaz o caminho de muitas mulheres.
De orifícios diversos e com uma gramática visual pulsional Anna Maria Maiolino faz renascer o mundo como Clarice Lispector em “Perto do coração selvagem”: Sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro!
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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