Troquei de colégio. Tímido, retraído, não estava me adaptando bem. No segundo semestre tive uma ziquizira que me deixou algumas semanas em casa, nunca soube bem o que foi. Em retrospectiva imagino algo psicossomático, mas serviu para que prestasse atenção na novela das 7: Estúpido Cupido.
Escrita por Mario Prata, era ambientada em 1961. Eu passava o dia esperando o capítulo, adorava a história. Lendo o jornal – coisa que sempre fiz, as possibilidades de passatempo em 1976 não eram muitas – descobri que a história era baseada na juventude do autor em Lins, SP. E que naquela época ELE era retraído e tímido…
Não sei se isso era verdade, mas mudou minha vida. Em vários níveis. Primeiro, saber que eu tinha esperança. Podia ser tímido, retraído, introvertido, canhestro, encalistrado e pejoso, mas vir a ser alguém (acabei não sendo, paciência.). Segundo, a história em si. Eu podia escolher entre ser vítima e ser transgressor… Era apenas o caso de estar na turma certa!
As coisas definitivamente começaram a mudar para mim. E tudo graças a uma novela. A força da cultura popular salvou um encabulado, acanhado, débil, vexado, bisonho e espantadiço jovem.
No mesmo ano o paranormal Uri Geller veio ao Brasil. No dia de seu especial na Globo fui escalado para acompanhar minha madrinha na modista.
Ser criança nos anos 70 era garantia de tédio. Hoje os pais e parentes se dedicam a não deixar a infância de seus rebentos ter um segundo de sossego e reflexão. É preciso que haja movimento, ação, diversão, 24 horas por dia. Que Deus nos impeça de desagradar um infante! Naquela época, well, não tínhamos direito a nada, nem a protestar. Íamos aonde fôssemos chamados, e pronto. Mas dei sorte: a modista e a família estavam assistindo à picaretagem, digo, apresentação. Eu sempre tendi a cético, e na flor de meus 13 anos estava achando aquele negócio meio suspeito. Ele não só entortou as proverbiais colheres como consertou coisas e adivinhou o que os apresentadores desenhavam. Uma digressão: nunca esqueci a crônica do mestre Carlos Eduardo Novaes na semana seguinte. Li há 45 anos e ainda lembro trechos inteiros (“o paranormal adivinhou que o desenho oculto era um peixe. Aqui em casa foi muito vaiado, já tínhamos adivinhado e estávamos discutindo se era de água doce ou salgada”). A força do texto!
Na modista, chegou alguém que disse, assim que entrou – e que não sabia do paranormal:
-Gente, o elevador voltou a funcionar!
A força do pilantra.
O Brasil, nos anos 70, era assim, tudo gerava comoção. A atriz erótica Silvia Kristel (Emmanuelle) veio ao Brasil e foi recebida no Congresso Nacional. Seu filme não havia sequer sido liberado pela censura, mas os deputados ficaram assanhados para conhece-la. O Departamento de Censura assistia a filmes, lia livros, ouvia canções e decidia se nos fariam mal ou não. Se sacrificavam por nós, se contaminavam com aquilo tudo, coitados! Conta-se que autoridades tinham acesso aos materiais proibidos, especialmente os eróticos. Daí, talvez, a sofreguidão com que quiseram babar em cima da atriz.
A força da quinta série…
Se censuravam o inocente sexo de Emmanuelle (o filme, anos depois, passou na TV), não censuravam programas “mundo cão”, como o “O Povo na TV”, que já citei nessa coluna. Nele, uma criança morreu ao vivo e nada aconteceu. Acabou acontecendo por patrocinarem as “curas” de um sujeito chamado Roberto Lemgruber, mas não deu em nada. Quem surgiu naquele show de horrores? Roberto Jefferson. Tudo se encaixa, de alguma forma. A força da sordidez!
Aquela década tinha uma vivacidade bacana. Rolava um certo frisson com sua chegada. Havia o cinema Bruni 70, bar caneco 70, novela Pigmalião 70, e as expectativas pareciam se confirmar com a vitória na Copa de 70. Eram anos coloridos, hippies, havia algo no ar… Mas no fim eram apenas os aviões de carreira.
Tinha luta para derrubar o que havia de ruim. Jovens geniais, Chicos, Caetanos, Paulinhos, Gils, Bethanias, Naras, Henfils, Millôres, Novaeses, Venturas, Veríssimos, que mantinham as “autoridades” em pé de alerta. E havia os Pratas, os Gomeses, os Bragas, que colocavam nas novelas de forma velada o que precisávamos e queríamos assistir. Eles tinham a força, mas nós tínhamos a inteligência, o humor, a arte, a beleza. E querem reviver a parte ruim dos anos 70, sem cor nenhuma…
Andava triste, jururu, desesperançado, melancólico, cabisbaixo, soturno, mas me dei conta que já saímos de situações ruins antes, e havemos de sair dessa. Botaremos para fora o indigitado, coisa ruim, velhaco, infame, abjeto, sórdido e desprezível mequetrefe.
Já se sentiu melhor também? Pois é: a força de um desabafo!
PS: Ao me vacinar, me inscrevi na Clínica da Família, do SUS, RJ. Passei por uma triagem, na qual uma médica super atenciosa ficou meia hora conversando comigo. Iria me encaminhar para um gastro, tenho um problema recorrente.
Como já fui a vários, meio que esqueci do assunto. Mas eles, não: uma semana depois tocaram a campainha da minha casa. Era uma assistente social com meu cadastro e com a marcação da consulta! NA MINHA PORTA! Depois dessa, claro que fui à consulta. Cheguei, aguardei por uma hora, mais ou menos (já esperei muito mais que isso em consultas pagas), e fui atendido.
Chamemo-lo de Dr. P. (vou preservá-lo da peçonha dos anti-SUS – entendedores entenderão). Simplesmente uma das melhores consultas que tive na vida – e tive muitas. Perguntei sobre seu consultório, para não perder o contato, e ele não tem. O negócio dele é SUS, atender o povaréu.
Por conta da médica da Clínica, por conta dele, é que acredito que temos salvação. O SUS é talvez nosso maior patrimônio, esses profissionais, com péssimas condições, praticam a medicina real, verdadeira e necessária. Precisamos preservar e dar-lhes meios de praticarem suas artes.
E na hora de votar, não se esqueçam: Mandetta posa de bonzinho, mas não fez NADA durante a pandemia, além do óbvio, e era anti-SUS quando foi escolhido ministro. Cuidado!
E viva o SUS!
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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