O Estado: uma apresentação – IREE

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O Estado: uma apresentação

Alysson Leandro Mascaro

Alysson Leandro Mascaro
Jurista, filósofo e professor



Quando se pensa em política, via de regra se pensa no Estado. Na maioria das considerações e opiniões a respeito, a política é sempre estatal: quem não disputa cargos, não assume mandatos ou não é agente público não se considera atuando na política. Ainda que seja um grande financiador de campanhas, ainda que seja dono de jornal ou rede de televisão e manipule notícias e debates, não sendo diretamente candidato, não se toma por político.

Somente se pode pensar na associação entre política e Estado no capitalismo. Em sociedades sob modos de produção anteriores, a política era exercida pelos senhores de escravos ou senhores feudais, quase sempre diretamente, sem limites e peias terceiras. O que parece Estado, na antiguidade ou na Idade Média, é, na verdade, uma mera associação direta de senhores dominantes – como seria, na atualidade, uma federação de banqueiros ou industriais, por exemplo. O poder político, nas sociedades pré-contemporâneas, é exercido por aqueles que dominam economicamente: possuem as terras e subjugam os trabalhadores escravizados ou servis. Não há garantia de que seus arranjos senhoriais sejam mantidos por forças terceiras às suas próprias vontades. Sociedades de força e mando tradicional só mantêm seus acordos políticos caso outros não sejam feitos ou caso outras forças não os sobrepujem diretamente. Há muitas formas de arranjo político na Idade Antiga e na Idade Média, todas elas não-estatais.

Somente no capitalismo distingue-se o poder político do poder econômico. Então, nas sociedades capitalistas, concorrenciais, com variados agentes econômicos em disputa, o poder político não se concentra nas mãos de nenhum deles nem de nenhuma de suas frações: é terceiro, chamando a si o monopólio da violência oficialmente tolerada. É verdade que, a partir da Idade Moderna, a figura do Estado já surge em algumas sociedades europeias, mas seu perfil não é similar ao atual: o Estado, aí, era o domínio de um super-senhor feudal, o monarca absolutista, ou a repetição do domínio direto de vários senhores do passado. É apenas na contemporaneidade que então toma forma, de modo estrito, o Estado tal qual o conhecemos: com revoluções burguesas, cortam-se os laços da política com o senhorio feudal e com mandos diretos. Uma entidade terceira concentra as relações políticas da sociedade capitalista.

Tal figura política não é erigida em benefício da população, do bem-comum ou do progresso. A existência de um aparato político apartado dos detentores dos meios de produção se dá exatamente para que possam ocorrer as relações burguesas. Senhores de escravos e senhores feudais garantiam por si só suas posses; no capitalismo, será o Estado que garantirá o capital dos capitalistas, permitindo, então, um acúmulo de capitais tendente ao infinito. O Estado enseja também infraestrutura à produção e à circulação de mercadorias e, ainda, repressão sistemática a situações, ações, lutas, pessoas, grupos e classes indesejáveis às burguesias e grupos que lhes são coesos.

A força do Estado, organizando politicamente a sociedade capitalista e monopolizando a violência, é também sua fraqueza: o Estado existe exatamente como mecanismo da reprodução das relações sociais capitalistas. Ele não é um corpo autônomo de forças ou de instituições já existentes que, então, encontra a classe burguesa e a ela se acopla. O Estado é erigido pelas relações sociais burguesas, que destroem, retificam ou reconfiguram instituições e forças já anteriormente existentes e, além disso, configuram outras, até então não conhecidas socialmente. Materialmente, o Estado se funda nas relações capitalistas. As formas da produção e da circulação são sua base. São tributos que sustentam o Estado, é a dinâmica do capital que lhe dá eixo e razão de ser. Assim, o Estado é capitalista, ainda que não de nenhum burguês em específico.

Alcançar a natureza do Estado é compreender, fundamentalmente, sua forma social. Não são seus poderes, suas instituições, seus líderes ou seu corpo de agentes que constituem, por si só, o Estado. Nem tampouco o Estado é a nação, ou a reunião contratual dos indivíduos da sociedade. O Estado é uma forma de dominação advinda das relações sociais especificamente capitalistas. As relações entre sujeitos, tomando forma de mercadoria – a compra-e-venda do trabalho assalariado e de todos os produtos daí advindos –, só podem existir se houver uma relação política apartada da força direta dos burgueses. Caso contrário, o domínio econômico se converteria em imediato domínio político e a relação social serial feudal ou escravista. Também só se torna possível transacionar mercadorias e a força de trabalho assalariada se os capitais estiverem garantidos por um poder distinto de cada burguês e suficiente para exercer fisicamente tal garantia. Assim, o Estado é uma forma política específica, diretamente derivada da forma mercantil.

Toda a ação política dentro da forma política estatal é uma ação sob as formas capitalistas, ainda que seus agentes, como os governantes ou os legisladores, sejam elementos das classes trabalhadoras. Mesmo políticas progressistas – aumento salarial, ampliação do direito de votar e ser votado, industrialização, ampliação da infraestrutura, melhorias urbanas – são políticas capitalistas. A superação da exploração capitalista é, necessariamente, a superação da dominação política sob forma estatal. O socialismo é a tomada dos meios de produção e a tomada do poder político pelas classes trabalhadoras. O socialismo não se faz com um Estado progressista, mas com o fim do Estado e o início do poder comum e coletivo liberto da dinâmica do capital e da acumulação.

O Estado, derivado das relações sociais sob forma de mercadoria, guarda relativa autonomia em face dos interesses diretos e imediatos das burguesias. Mas isso não quer dizer que seja capaz de impedir as próprias contradições e crises da sociedade capitalista. O Estado é a forma política da sociedade da valorização do valor, uma das formas necessárias da exploração mercantil e contratual de seres humanos por outros. A crítica à política não pode ser apenas a crítica aos políticos ou o clamor moral por instituições. O Estado é a forma política da acumulação. Na crítica estrutural às formas do capitalismo está a potência de transformação de nossas sociedades e de nosso tempo.



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Alysson Leandro Mascaro

Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).

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