O Estado e o direito são formas sociais surgidas sob as condições de um tempo histórico específico, o do modo de produção capitalista. Uma dada articulação de ambas as formas sociais costuma ser chamada, no plano político, por Estado de direito: a juridicidade moldando o poder estatal. Louva-se a chegada a tal situação política por permitir, então, o governo das leis acima da vontade dos eventuais dominantes. Na Europa, que saía tanto do feudalismo quanto do Absolutismo, tal contraste foi marcante. O antigo personalismo do poder dos senhores feudais e dos monarcas seria limitado por instituições e normas de perfil liberal.
A explicação mais tradicional e recorrente a respeito do surgimento do Estado de direito reforça, então, o movimento histórico de contenção dos poderes até então dominantes. As conquistas das revoluções liberais seriam a causa imediata da chegada ao Estado de direito. A revolução inglesa no século XVII, a independência dos EUA e a revolução francesa no século XVIII demonstrariam, exemplarmente, a vitória do governo das leis em face do governo dos homens. A assim se tomar, o Estado de direito é, fundamentalmente, um projeto político.
Trata-se de um ganho no arranjo institucional, evitando o poder pessoal ou direto. Por se considerar uma vitória política, então também seria nesse mesmo plano que a manutenção do Estado de direito se faria. A fraseologia de que o preço da liberdade seja a eterna vigilância é seu corolário típico. O Estado de direito é a bandeira empunhada pelo liberalismo para demonstrar sua superioridade em face das ditaduras, dos despotismos e dos mandos diretos.
No entanto, materialmente, a causa do Estado de direito está no modo de produção capitalista. Em sociedades sob determinação da forma mercadoria, nas quais surgem classes burguesas que entesouram capitais mediante a exploração do trabalho assalariado, o poder político é apartado do poder econômico. Assim sendo, a propriedade privada do capitalista não está mais apenas na dependência de sua imposição de violência pessoal, mas, sim, passa a ser garantida por uma força política terceira, dita impessoal, o Estado. Somente esse deslocamento permite que os burgueses prossigam uma marcha negocial de concorrência e acumulação e não sejam convertidos em senhores feudais ou de escravos.
O deslocamento do poder político para um aparato terceiro que não aquele de cada burguês faz com que o regramento desta forma política seja limitado a fim de que, também, este Estado não se torne um obstáculo ao interesse da classe burguesa. Para que não seja agente de bloqueio da dinâmica do capital, o Estado é talhado a partir das molduras da propriedade privada e da acumulação. Na forma política estatal, competências e impedimentos, poderes e impotências, iniciativas e freios, além de dosagens e balanços e internos, fazem com que o Estado tanto seja capaz de garantir o capital ao capitalista quanto, também, não seja capaz de impedir a marcha da acumulação burguesa.
Despontam, na Idade Moderna, ideias de divisões internas dos poderes estatais a fim de que sua dosagem permita uma eficiência material na garantia do capital e, também, enseje sua impotência em caso de oposição ao interesse burguês. O pensamento de Montesquieu simboliza o movimento teórico que aponta à divisão de poderes e que, posteriormente, será um dos motes do Iluminismo e das revoluções liberais burguesas. Sua manifestação mais comum, de tripartição de poderes – executivo, legislativo e judiciário –, é tanto uma constituição de competências inexoráveis – um múnus necessário de sustentação de uma dada sociabilidade – quanto, ainda, o delineamento dos graus de fraqueza do poder político a partir da contrafação automática de suas competências: suas incompetências formais.
O segredo decisivo do Estado de direito não está nas suas instituições políticas, mas, sim, na materialidade das relações sociais capitalistas que lhe dão base. Os sujeitos de direito, átomos da sociabilidade capitalista, organizam a apropriação privada dos meios de produção. O contrato é a forma necessária de relação entre os agentes produtivos. Nessa dinâmica, a forma política estatal tem por base e teto exatamente a sustentação da propriedade privada do burguês e da exigibilidade dos contratos. O Estado de direito se orienta muito mais à reprodução privada capitalista que, propriamente, às demandas institucionais ou políticas da democracia ou do cumprimento da legalidade pelos governantes.
Assim, materialmente, o Estado de direito é sustentado não pelo próprio Estado ou por suas instituições, mas pelas classes burguesas e pela dinâmica da reprodução do capitalismo. O Estado de direito não é, então, a tábua incontornável de salvação da política nem índice de superioridade política, a não ser quando comparado com manifestações políticas anteriores, como o Absolutismo ou os senhorios feudais e escravistas. Por Estado de direito deve se compreender, ao cabo e concretamente, a forma política garantidora da forma mercadoria. Às classes exploradas, o Estado de direito é a imposição da manutenção de sua exploração. A superação revolucionária desse quadro gera não um Estado de direito melhorado, mas o fim da forma Estado e da forma direito: em uma sociabilidade socialista, a tomada dos meios de produção por toda a classe trabalhadora e o poder popular é que articulam, de modo conjunto e coeso, o destino político da sociedade.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Alysson Leandro Mascaro
Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).
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