Como a arte e a psicanálise podem colaborar com a construção da crítica
Em tempos de pulverização imediata da imagem e da linguagem cabe um recuo crítico para que possamos adensar a dimensão política da arte. A psicanálise torna-se aqui um dispositivo importante. Desde sua fundação, com Freud, a psicanálise encontra na arte uma parceira que auxilia a deslindar as questões do sujeito. Se a arte oferece solo fértil para pensar questões fundamentais e, muitas vezes, difíceis de situar no senso comum, em tempos de celeridade absoluta e circulação barata em redes sociais, cabe um compromisso ético que devolva a espessura da crítica.
Se aqui convoco a psicanálise é para que possamos estabelecer diálogo e fricção – e não como mero exercício de ilustração da arte por conceitos psicanáliticos – sabendo que, como assinalava Freud, o artista está sempre à frente do psicanalista. Mais adiante, Jacques Lacan retomou essas ideias para pensar a arte como um contorno do vazio. Na diferença entre o vazio e o nada, entre o vazio e a mediocridade, encontramos o fino diálogo arte-psicanálise e, a partir daí, podemos investigar os efeitos de sujeito que podem advir no contemporâneo.
Na contramão do puro marketing de si e dos jogos de vaidade pode-se criar outra textura que contemple um trabalho simbólico, capaz de capturar a sensibilidade e o não quantificável em um tempo que está sempre em esquiva e escorre vertiginoso em uma lógica que banaliza tudo e se curva desavergonhadamente ao capital. Neste ponto preciso, uma dobra pode acontecer: jogar o jogo e fazer parte, de alguma forma, do laço social, não significa negociar a própria dignidade e perder as capacidades crítica e poética.
Se podemos pensar o contempôraneo como aquilo que se mostra como puro impasse onde lampejos de sentido se alojam e desalojam, cabe ao crítico revelar o inegociável e o inefável da linguagem em um tempo pulverizado e ancorado em imaginários empobrecidos. Trata-se de uma convocação ética que sustenta a dimensão do vazio a partir de uma relação radical com o dentro e o fora, modalidades que não se excluem nem se apagam, mas convivem simultaneamente em tensão constante, como aponta o psicanalista Massimo Recalcati no ensaio “As três estéticas”, em que desenvolve um adensamento da ideia da arte como discurso e ética que estabelece diálogos entre o interior e o exterior das estruturas e, sobretudo, como modo de operar que perfura a lógica únivoca da representação.
A arte, como indica Lacan, não evita e nem obtura, mas contorna o vazio extraindo daí um sentido novo, que acaba por extrair do objeto o aspecto de dado imediato do mundo, contribuindo para renovar-lhe a dignidade. Há aí uma diferença radical dos apelativos discursos dos “comunicólogos” das redes sociais ou do saber-sabido. Um crítico é, antes de mais nada, alguém que recolhe indícios, resíduos e restos, que trabalha com o resto de uma operação signficante que não se dobra à mediocridade do imediatismo e à voracidade e selvageria frenética do capitalismo. Para Massimo Recalcati, “a criação artística faz surgir o objeto sobre o vazio”. E aqui é preciso pensar também na figura do crítico como aquele que irá se opor ao nada, colocando acento no vazio e contornando-o com um olhar que mira o informe, o inacabado, uma pulsação que exige dedicação, tempo e rigor de escuta.
Desses inevitáveis resíduos – e como forma de ensaio – a crítica derruba as operações ilusórias que se ancoram meramente na imagem e se abre para o real – o real com que o artista lida, joga, ludibria, contorna sem rasteirizar sua potência de inassimílável. Conta Lacan que, quando Cézanne pinta frutas, ele não as imita e, sim, as presentifica. E quanto mais se presentifica um objeto, mais se abre uma dimensão em que a ilusão se quebra. Cézanne faz surgir o objeto com nova dignidade e é essa tentativa de representar o irrepresentável que deveria estar em jogo na escuta de quem decide empreender a tarefa da curadoria ou da crítica, para que essa tarefa, ela mesma, não seja mais uma dentre tantas banalidades que se pulverizam por aí.
Há hoje adesão imediata ao banal com uma proliferação impressionante de uma espécie de turismo existencial – como diz o filósofo Peter Pál Pelbart – que torna tudo pasteurizado e superficial como uma entediante viagem exótica que visa não contornar o vazio, mas evitá-lo a qualquer custo. O grande engano é que, ao evitar sistematicamente o vazio, o discurso capitalista que se espraia pelo “sistema da arte” acaba por resvalar no mais profundo nada. Neste delicado e contundente momento é que a tarefa crítica se faz, mais do que nunca, urgente e necessária, destacando a singularidade, a dimensão de um ato como possibilidade ética que produza uma radicalidade como a acentuada por Lacan, no sentido de que a arte não se oriente pelo campo do ideal e do fetiche, mas pelo real: pelo que não engana.
Lacan dá o exemplo do ceramista que envolve o vazio para criar o vaso: é a partir do vaso, que o vazio e o pleno entram como tais no mundo. O oleiro inventa um vaso a partir do furo e coloca o vazio como elemento fundamental para a criação. Cabe aqui uma convocação do curador e do pesquisador como criador, inventor de mundos e fissuras, alguém que responda ao “nada-nadificante” destes tempos com a dimensão que pode salvaguardar o mistério, abrigar o enigma e o verdadeiro corte lacaniano: aquele que mais do que a encenação da violência ou a performance esteriotipada de uma espera, anuncia um ato.
Minha aposta é que entre o ato artístico e o ato analítico, a própria dimensão da crítica vá se constituindo, de modo que, aquele que se empenha genuinamente na tarefa do pensamento, possa invevitavelmente lidar com o risco, um risco próximo ao de Octavio Paz, que sabia tatear com sensibilidade cortante e ensaística: “Ao imaginar o poema como uma configuração de signos sobre um espaço animado não penso na página do livro: penso nas Ilhas dos Açores vistas como um arquipélago de chamas numa noite de 1938, nas tendas negras dos nômades e nos vales do Afeganistão, nos cogumelos dos pára-quedas suspensos sobre uma cidade adormecida, na pequena cratera de formigas vermelhas em algum pátio citadino, na lua que se multiplica e se anula e desaparece e reaparece sobre o seio gotejante da Índia após as monções. Constelações: ideogramas”.
Eis aí uma maneira verdadeiramente política de se pensar curadoria: constelações e ideogramas em contraponto à influência e algoritimos. E, mais do que nunca, é preciso reaproximar a dimensão crítica do gesto curatorial à maneira de Mário Pedrosa, que evidenciou o estado de decadência dos centros de produção e distribuição da arte em que a arte “perdeu sua autonomia existencial e naturalmente espiritual”, reduzindo-se a mero capricho e objeto de luxo estetizante. Que possamos olhar para o céu e para o chão e, novamente, convocar constelações e ideogramas.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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