Por Yves Finzetto e Leandro Bauch
Entre 1964 e 1966, dois jovens e talentosos compositores que despontavam na fama celebraram uma série de contratos pelos quais cediam seus direitos autorais patrimoniais sobre vinte e sete canções para uma editora musical, que ficou responsável por divulgar e vender as composições, por meio de livros de partituras ou de fonogramas (discos e compactos).
Em junho de 2022, passados mais de cinquenta anos, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que os termos daqueles contratos são válidos e julgou improcedente uma ação ajuizada pelos cantores e compositores, então já consagrados, Roberto e Erasmo Carlos, para anular a cessão dos direitos autorais sobre as composições.
Além de envolver dois dos mais prolíficos e consagrados compositores da música popular brasileira, o caso ganha uma particular importância para todos os agentes do mercado musical ao demonstrar o peso que os tribunais atribuem à redação contratual quando decidem casos envolvendo direitos autorais.
Em sua ação, os compositores pediram ao Tribunal que descaracterizasse a transferência, em favor da editora, dos direitos autorais patrimoniais sobre as composições. Argumentaram que, apesar de estarem denominados como “contrato de cessão de direitos autorais”, tais acordos teriam, na realidade, natureza única de contrato de edição, pelo qual uma das partes – a editora – se obriga a reproduzir e divulgar uma obra e, em contrapartida, recebe o direito de explorá-la exclusivamente, mas sem se tornar titular daqueles direitos.
Na ação, também alegaram que, mesmo que fosse considerado que os acordos teriam disposto sobre a cessão de direitos, e não somente sobre a edição das composições, a Lei de Direitos Autorais somente permitiria a transmissão “para modalidades de utilização já existentes à data do contrato” (art. 49, V). Com isso, os compositores sustentaram que a editora não estaria autorizada a explorar as composições por meios digitais – em especial, pelas plataformas de streaming –, que não existiam à época da assinatura dos contratos.
Por fim, argumentaram que a empresa não estaria cumprindo devidamente suas obrigações editoriais, pois teria deixado de prestar informações sobre os valores acordados com as plataformas de streaming, cujos proventos para os compositores seriam irrisórios. Ademais, estaria sendo displicente quanto ao combate à exploração ilegal das obras por alguns sites brasileiros.
No entanto, apesar dos argumentos, o Tribunal decidiu negar o pedido e considerou que os contratos, celebrados há mais de cinquenta anos, ainda produzem seus efeitos regulares e acarretaram a efetiva transferência de todos os direitos autorais patrimoniais dos compositores para a editora.
Em primeiro lugar, os desembargadores consideraram a aplicação da antiga lei de direitos autorais (Lei nº 5.988/73), que vigia à época da celebração dos contratos, cujo art. 52 (correspondente ao art. 49 da lei atual) prevê a possibilidade de cessão, total ou parcial, dos direitos patrimoniais do autor.
Nessa linha, o Tribunal analisou detalhadamente os termos acordados e concluiu que o contrato previu, expressamente, a transferência da titularidade dos direitos patrimoniais sobre as composições para a editora. Esta, em contrapartida, ficou responsável por divulgar e explorar as obras e por pagar um percentual calculado sobre as receitas geradas por essa exploração. Assim, de acordo com os julgadores, teria ocorrido “uma transferência de titularidade com previsão de pagamento específico”, e não apenas um contrato de edição, sendo que, de acordo com um dos desembargadores, a “participação nos lucros não desnatura o negócio de cessão, nem o converte em contrato de edição ou em contrato de licenciamento” (TJ/SP, Apelação Cível nº 0026199-21.2021.8.26.0100).
A respeito da limitação da cessão apenas “para modalidades de utilização já existentes à data do contrato”, o Tribunal decidiu que essa norma, por estar presente em uma lei com vigência posterior à assinatura dos contratos – a lei de direitos autorais, de 1998 -, não se aplicava ao caso. Assim, a cessão de direitos foi considerada válida para todas as formas possíveis de exploração das composições, incluindo os serviços de streaming.
Quanto ao argumento sobre o descumprimento das obrigações de informar sobre valores acordados com as plataformas de streaming, os julgadores consideraram que a editora nunca celebrou um contrato diretamente com tais empresas. A editora alegou ser associada à UBEM (União Brasileira de Editoras de Música), que, por sua vez, é responsável pela celebração de acordos sobre valores a serem cobrados no ambiente digital. A alegação de que os valores recebidos seriam irrisórios foi desconsiderada, pois os autores não conseguiram demonstrar que o percentual repassado teria sido inferior àquele contratado ou que teria havido qualquer ato de má-fé por parte da editora.
Para além do destaque recebido por tratar sobre dois célebres compositores, a decisão do tribunal paulista guarda uma relevância para o meio jurídico por ser um clássico exemplo de como a redação contratual, nos casos envolvendo direitos autorais, exerce um papel decisivo para uma causa ser julgada em favor de uma ou de outra parte.
Os desembargadores participantes do julgamento fiaram-se estritamente ao texto daqueles contratos para considerar o alcance de seus efeitos (no caso, cessão de todos os direitos patrimoniais sobre as composições). Nem a alegação de que os artistas eram jovens e inexperientes à época da assinatura, nem o fato de os contratos serem do tipo “de adesão” foram suficientes para convencê-los de que os termos poderiam ser flexibilizados.
Essa constatação deve acender um alerta para todos os agentes que trabalham no setor de produção cultural, em especial aqueles responsáveis pela parte criativa das obras, para que considerem, com cuidado, os termos dos contratos que celebram no decorrer de suas carreiras. É razoavelmente comum que a empolgação com uma nova contratação, aliada à inexperiência com uma matéria fora de seu campo de conhecimento, faça com que talentos percam a noção do que está sendo exatamente estipulado e de quais são as consequências jurídicas resultantes, podendo gerar disputas e decepções que poderiam ter sido evitadas.
No mercado musical, a nova realidade provocada pelo advento das plataformas de streaming, que alteraram por completo a forma de distribuição e consumo de músicas, inflamou ainda mais os ânimos dos artistas e compositores responsáveis pelos conteúdos ali disponibilizados, que muitas vezes recebem valores irrisórios enquanto os números globais do mercado fonográfico não param de crescer (de acordo com a Federação Internacional da Indústria Fonográfica, o Brasil tem hoje o 11º maior mercado fonográfico do mundo, com um faturamento anual de aproximadamente R$ 2,1 bilhões).
Parte da solução dos problemas passa pela correta compreensão dos termos que foram acordados com gravadoras e editoras musicais no passado, muitas vezes antes da vigência da lei autoral atual. Além disso, para novos contratos, é necessário antever e regular as potenciais formas de exploração de uma obra artística, o que pode ser a diferença entre um contrato que gere os frutos esperados ou que traga frustrações para o criador.
*Yves Finzetto. Advogado, músico e produtor cultural. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Erasmus programm). Bacharel em Letras e Mestre em Estudos Culturais, com pesquisa concentrada na área de relações internacionais e políticas públicas de cultura, pela Universidade de São Paulo (USP).
*Leandro Bauch. Bacharel e mestrando em direito pela Universidade de São Paulo, especialista em Direito Civil e Direito Autoral.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Equipe IREE
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