O equívoco “bem intencionado” da Auditoria Cidadã da Dívida – IREE

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O equívoco “bem intencionado” da Auditoria Cidadã da Dívida

Guilherme Mello

Guilherme Mello
Economista e sociólogo



A “Auditoria Cidadã da Dívida” (ACD) é uma iniciativa de forte apelo entre simpatizantes e políticos de esquerda. Sua marca é denunciar práticas de gestão da política fiscal como se fossem caso de polícia. No mês passado, a pretexto de criticar o projeto que concede autonomia ao Banco Central ora em tramitação no Congresso, adotou também uma postura contrária a criação de depósitos voluntários remunerados, que poderão substituir em parte as atuais operações compromissadas como instrumento de atuação do Banco Central (BC) no controle da liquidez.

Por ser um tema muito técnico, mais conhecido por economistas e operadores financeiros especializados, ele facilmente se torna alvo de simplificações grosseiras e interpretações equivocadas. Surfando na imagem negativa do setor financeiro, a ACD procurou atribuir ao projeto de lei 3887/2020, de autoria do senador Rogério Carvalho (PT-SE), a intenção de legalizar uma pretensa “fraude” que beneficiaria os bancos ao remunerar a “sobra de caixa” dessas instituições financeiras às custas da população pagadora de impostos.

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O BC é a instituição pública responsável por gerir a moeda em uma economia nacional. No mundo contemporâneo, ele realiza essa gestão estabelecendo o “preço” dessa moeda ao fixar a taxa de juros de curto prazo, que no Brasil é conhecida como SELIC. Para isso, o BC oferta e demanda a moeda desejada pelos bancos a esse preço. É isso que faz os juros de curto prazo convergirem para a meta da Selic estabelecida pelo BC independentemente da vontade do sistema financeiro. Ao agir assim, o Banco Central está exercendo a sua prerrogativa de determinar um preço crucial da economia, a taxa de juros que, na ausência de sua ação, seria determinada integralmente pelo mercado.

Para realizar essa gestão, o BC se vale de uma série de instrumentos. Um dos principais são as chamadas “operações compromissadas”: a venda de um título público que rende a taxa SELIC, com o compromisso de recompra-lo. Dessa forma, o BC é capaz de administrar a disponibilidade de caixa dos bancos e garantir que que a taxa de juros que os bancos emprestam um para o outro (conhecida como taxa do mercado interbancário) seja igual a meta de juros SELIC estabelecida pelo COPOM, no âmbito do “modus operandi” do regime de metas de inflação.

Caso o BC na prática não administre o volume de recursos no mercado interbancário, ele, enquanto autoridade monetária, estaria abrindo mão de sua capacidade de definir a taxa de juros de referência do país e deixando essa definição nas mãos do “mercado”.

O que o PL 3877 propõe é simplesmente a substituir as operações compromissadas, que usam como lastro títulos da dívida emitida pelo Tesouro Nacional exclusivamente para este fim (e pagam a taxa SELIC do dia), por depósitos remunerados, que pagam a mesma taxa SELIC, mas sem utilizar títulos da dívida pública. Esse instrumento é utilizado pela maior parte dos bancos centrais do mundo como forma de controlar a liquidez. O objetivo é separar um instrumento de política fiscal (a dívida pública) da operacionalização da gestão monetária. Não se trata de uma panaceia, mas de uma forma correta de operar e contabilizar as operações monetárias do BC.

A hipótese de o Banco Central simplesmente não oferecer nenhum tipo de remuneração pelo “excesso de caixa” dos bancos só é plausível caso a meta Selic seja zero. Caso contrário, não haverá motivo para os bancos depositarem voluntariamente seu excesso de caixa no BC. Eles poderão utilizar seu excesso de caixa para comprar títulos de títulos de diversas naturezas, público e privados – exercendo uma pressão altista ou baixista sobre os juros, em cada conjuntura específica, tornando-o bastante volátil.

Na pior das hipóteses, os bancos podem buscar outra moeda, como o dólar, ou investimentos internacionais, promovendo uma fuga de capitais e pressionando a taxa de câmbio, o que pode, inclusive, fazer o BC subir a taxa Selic, o que é indesejável neste instante.

A hipótese de os bancos utilizarem esses recursos para oferecer crédito é delirante: em primeiro lugar, por que o excesso de caixa existe porque os bancos não quiseram emprestar ou não encontraram demanda por crédito por parte dos agentes “não financeiros”. Em segundo lugar, por que a criação de crédito é uma operação que se faz com a ampliação do passivo dos bancos por possuírem essa prerrogativa de criação de poder de compra na economia. Não se emprestam reservas bancárias diretamente. Elas são utilizadas exclusivamente nas transações entre os bancos e entre eles e o banco central.

Em resumo, é falsa a acusação de que o PL 3877 é uma fraude. Uma mentira baseada em desconhecimento básico do funcionamento do sistema monetário, mas embalada no atraente embrulho da desconfiança em relação aos abusos dos bancos.

Caso similar ocorre no discurso de criminalização da dívida pública promovido pela ACD. Ela comete inúmeros erros conceituais, como considerar que a rolagem da dívida pública (emissão de nova dívida para financiar a amortização de dívida antiga) são recursos que concorrem com os usos orçamentários. O eventual cancelamento dos títulos não traria recursos para saúde ou educação, mas apenas dificultaria o financiamento dos déficits públicos e a gestão de liquidez da economia.

Retirar do Estado os instrumentos que lhe permitem gerir a política macroeconômica, seja ela fiscal ou monetária, é o sonho dos neoliberais. Neste sentido, a ACD não comete apenas um “equivoco bem intencionado”, mas joga água no moinho daqueles que desejam um Estado incapaz de interferir na economia.

PS: Agradeço imensamente a colaboração dos professores Ricardo Carneiro, Fábio Terra, Luís Fernando de Paula e Marcelo Miterhof na elaboração deste artigo. Eventuais equívocos são de total responsabilidade do autor.

 



Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.

Guilherme Mello

É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.

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