A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
Caetano Veloso
Quase dois anos depois, no primeiro movimento para fora de casa em direção ao mundo, encontro uma cidade nova. Em São Paulo, tudo parece se reconfigurar: os prédios estão maiores e as ruínas imensas. Tudo arde e queima e aos sobreviventes da catástrofe restam espanto e perplexidade. Mas restam também desejo de vida e de recomeço, em contraste com marcas visíveis de um país arrasado política, econômica, sanitária e ambientalmente.
O presente ensaio – de retorno ao mundo – se confunde com a escrita de um luto. Como gênero e forma de escrever, o ensaio permite o contato com questões e problemas no movimento do desejo de saber e não na mera exposição do que já se conhece. Posso aqui, então, me mover por perguntas de forma dispersa, de modo a não dissolver o grão de estranheza de cada interrogação que chega – ora como divagação, ora como possibilidade crítica – diante da avassaladora experiência que todos vivemos, cada um à sua maneira. A forma fragmentária do ensaio permite que os fatos do cotidiano possam se ligar ao processo do pensamento em estado de deriva como sustentação poética, como flutuação necessária para acessar o esboço de um luto.
Atônita, olho para São Paulo como quem olha para os escombros de uma civilização. Penso nas incomensuráveis perdas destes recentes anos que se foram. Penso na destruição que chega agora em seu ápice, no esfacelamento simbólico de uma ideia de país. Refundar o solo comum torna-se, então, tarefa ética urgente e, em um território de invenção tão singular quanto coletiva, encontramos a arte com sua força de transfiguração.
A arte que, tantas vezes, reinventou a própria ideia de morte como um trampolim para a vida, segue incluindo no risco uma aposta e a possibilidade do encontro, de um desvario que nos leve de volta ao essencial. Neste ensaio de volta a um mundo totalmente modificado e marcado de forma incontornável, destaco algumas exposições urgentes.
Destaco o trabalho “Plano de saúde e casa própria” dos artistas Thiago Honório e Thiago Bortolozzo que, no âmbito da inauguração do Sesc Mogi das Cruzes, participam da exposição “Ausente manifesto”. Trata-se de um trabalho de 2003, agora remontado: um outdoor vazio que anuncia, através do espelhamento e dos reflexos de placas galvanizadas, uma presença enigmática no campo do olhar, borrando fronteiras entre o eu e o outro, entre o visível e o invisível. A obra me remeteu a algo estranhamente singular que vi nesta viagem, feita de carro: na estrada, um imenso outdoor vazio na lateral da pista, que se destacava de muito longe, solitário em um espaço descampado, aberto por queimadas. No silêncio do outdoor vazio percebi, na intensidade daquilo que não se pode dar a ver completamente, a sutileza dos reflexos das folhas de uma única árvore que permanecia de pé no meio do descampado. Naquele instante, senti algo da força inexplicável de uma escrita que se eterniza como um lampejo irreversível, uma marca insondável, o mistério próprio de uma vida.
Algo da aparição e desaparição, alguma coisa próxima da epifania se abriu a partir da imagem e do silêncio de um outdoor vazio e de uma notícia aterradora: a partida de Jaider Esbell, grandioso artista que nos ensinou a olhar outras cosmologias.
Sob o impacto de uma viagem ao Japão, Jacques Lacan se apropriou de uma imagem que percebeu, entre as nuvens, do alto do avião: a planície siberiana, “verdadeiramente desolada, no sentido próprio, sem qualquer vegetação, a não ser reflexos”. Imagem semelhante era oferecida a meu olhar: uma desolação feita de reflexos, uma paisagem de restos de imagem, vazios de linguagem, um campo aberto, paradoxalmente, para que algo possa ser aí inventado.
“Moquém-Surari: arte indígena contemporânea”, exposição curada por Jaider Esbell no Museu de Arte Moderna, como parte da 34ª Bienal de São Paulo, é a marca de sua passagem infinita e mobilizadora. A paixão por algo que reinventa a vida a partir da presença de um real inapreensível, de um espaço vivo em que se desafia o intraduzível da existência com a força da invenção aberta ao não-sentido, que desliza pela natureza frágil, lacunar e misteriosa de imagens em que podemos nos pensar novamente como comunidade e como país. Um território de resistência e vida que recria sentidos como forma de elaboração, como afirmação sensível da existência. Não por acaso, recorro à arte como maneira de ainda forjar algo do sonho e da utopia, de elaborar questões que podem tocar intimamente e, também, refundar um solo comum.
Entre o espanto e o desejo de reconstrução podemos reinventar nossa história. No rombo aberto na existência pela pandemia – a infinidade de mortes, a necropolítica, a aniquilação de um país – caminhamos, ainda trêmulos, à beira do abismo. Nesse intervalo em que o limbo precisa ainda se tornar um lugar, a arte nos ajuda a contornar o vazio e ensina sobre o sobrenatural impregnado na presença de tudo. “Constelação Clarice”, em cartaz no Instituto Moreira Salles até fevereiro de 2022, revela a obra e o legado de Clarice Lispector, a partir da perspectiva do diálogo entre a literatura e as artes visuais. E é Clarice quem nos guia pelo alumbramento e pelo tremor da língua: “Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico – a vida é sobrenatural. E eu caminho em corda bamba até o limite do meu sonho”.
Foto: ‘Maldita e desejada’, 2012. Jaider Esbell. Acrílica sobre lona, 400 x 400 cm. Acervo Galeria Jaider Esbell de Arte Indígena Contemporânea
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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