O direito é elemento decisivo da constituição das relações sociais de nosso tempo. No capitalismo, os vínculos estruturais que ligam as pessoas são feitos de modo contratual. O que é de alguém é considerado como tal por direito – propriedade privada. Algo de alguém só é transferível a outrem caso ambos concordem – contrato. O direito é o mecanismo pelo qual a circulação das mercadorias se realiza – porque são seus proprietários que as trocam – e, também, o garante de que o capital esteja nas mãos do capitalista independentemente da força ou da habilidade deste para preservá-lo pelas suas próprias mãos.
O fenômeno jurídico tem especificidade histórica: somente em sociedades capitalistas se constitui e se desenvolve uma forma social na qual os agentes da produção são sujeitos de direito. Em sociedades pré-capitalistas, os vínculos entre exploradores e explorados são diretamente devidos à força bruta (como no caso do escravismo) ou da posse dos meios de produção que levava a graus variados de submissão servil dos que não os possuíam (como no caso do feudalismo). Em tais casos, dão-se relações diretas de exploração e submissão. Há os dominantes (senhores de escravizados ou de servos) e os submetidos às determinações de suas vontades. Pode-se falar que há, nas sociedades pré-capitalistas, sujeitos, mas não sujeitos de direito.
Somente no capitalismo os vínculos entre exploradores e explorados passam a ser feitos por mecanismos jurídicos. Os trabalhadores não são mais servis ou escravizados. Têm liberdade para se deslocar territorialmente mas, como não detêm os meios de produção e as condições para a subsistência, têm como alternativa básica de reprodução da vida apenas a venda da força de trabalho aos capitalistas, que dela produzem sua riqueza extraindo mais-valor. O vínculo entre o capitalista e o trabalhador passa a ser jurídico: contratando a exploração do trabalho de um pelo outro, ambos, naquele momento, são tidos por livres e iguais para o fim de estabelecerem direitos e obrigações recíprocas. Trata-se de uma igualdade para a desigualdade. O capitalista submete o trabalhador, pagando-lhe salário e entesourando o excedente gerado. Além disso, numa relação de hierarquia, impõe suas condições ao trabalhador. A produção capitalista é feita pelo contrato entre livres e iguais que, ao mesmo tempo, são e não são livres e iguais. O direito os iguala e os faz operar com a declaração recíproca de obrigações advinda da autonomia da vontade para que um se submeta ao outro.
O núcleo material do direito não é, como se costuma identificar pelo senso comum de juristas e não-juristas, a norma. Sociedades as mais variadas possuem também variados modelos de regras e normativas. O capitalismo constitui, no entanto, uma forma social de vínculo entre os agentes da produção na qual suas relações são necessariamente contratuais, jurídicas. Assim, o direito tem por núcleo uma forma de subjetividade jurídica: os sujeitos se vinculam mediante dispositivos que tornam suas vontades equivalentes para o contrato, como equivalentes são as mercadorias que trocam (força de trabalho por dinheiro). O capitalismo tem por núcleo a forma de mercadoria. Se tudo é mercadoria, tudo é transacionável e só pode circular mediante contrato, ou seja, livre disposição dos sujeitos. Se o capitalismo a tudo impõe uma forma social de mercadoria, então a todos impõe uma força social de sujeitos de direito, uma forma de subjetividade jurídica.
Foi Karl Marx, em “O capital”, que abriu a estrada de compreensão sobre a natureza material do direito e sua direta associação com o capitalismo. Evguiéni Pachukanis, o mais importante teórico do direito do século XX, em “Teoria geral do direito e marxismo”, expõe o caráter especificamente capitalista da forma de subjetividade jurídica, descobrindo que o direito tem nessa forma sua base, não pode ser confundido com a mera normatividade. Desde Pachukanis, uma vasta e profícua corrente de pensadores se dedicou a avançar na reflexão crítica sobre o direito, como, entre os brasileiros, Márcio Bilharinho Naves.
O sujeito de direito não é alguém que está garantido em sua dignidade ou em suas necessidades básicas pelo direito. Sujeito de direito é, acima de tudo, quem está submetido à forma do direito: somente vende o que é seu e somente tem o que compra. Por isso, conforme exponho em meu livro “Introdução ao Estudo do Direito”, a expressão sujeito de direito refere-se, basicamente, ao sujeito pelo direito. O direito não tem o condão de libertar os sujeitos da exploração, dado que é exatamente a forma pela qual a exploração capitalista se dá. Assim, direito não é justiça, a não ser que se tome por justiça o exato cumprimento da marcha contratual da propriedade privada e da acumulação capitalista.
Uma sociedade socialista não será aquela que estenderá direitos a toda a população. Será, sim, uma sociedade que acabará com o direito como forma de relação social entre os agentes da produção e que separa os indivíduos entre capitalistas e não-capitalistas. Não mais havendo propriedade privada e mercadoria, cessam então os vínculos contratuais que jungem exploradores e explorados, passando a classe trabalhadora a diretamente controlar os meios de produção. Formas superiores de planejamento social sobrepor-se-ão às circunstâncias do nascer rico ou acumular. Tal sociedade socialista se libertará da forma de sociabilidade jurídica para que se abram coordenações materialmente livres e iguais entre os sujeitos detentores dos meios de produção. Com a superação do modo de produção capitalista, o fim do direito pode ser o início de uma dignidade concreta entre os seres humanos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Alysson Leandro Mascaro
Jurista e filósofo. Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor e Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Implantador e Professor Emérito de várias instituições de ensino superior pelo Brasil. Autor, dentre outros livros, de “Estado e forma política” (Boitempo) e “Filosofia do Direito” (GEN-Atlas).
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