O Day After, A Nova Ordem e a Vizinha – IREE

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O Day After, A Nova Ordem e a Vizinha

Ricardo Dias

Ricardo Dias
É luthier, escritor e músico



Acordei com calor. O ar refrigerado estava desligado. Estranho. Quando me dei conta, notei que havia um sujeito barbudo, fumando um charuto – excelente, por sinal – com uma fita métrica, medindo o ambiente. Me assustei, e ele disse que me acalmasse. Em espanhol!

Não sou capaz de reproduzir, meu espanhol é ruim, então sigo em português mesmo.

-O que você está fazendo aqui?

-Bom dia, companheiro. Viva a revolução!

-Viva. mas o que diabos você está fazendo aqui?

-Estou medindo a casa, para ver quantas famílias podemos alocar aqui.

-Hein?

-Sim, Lula ganhou, acabou a propriedade privada!

-Mas…

-Alegra-te, companheiro! É uma vida nova!

Nesse momento, o sino da igreja do bairro começou a rebimbar. Reconheci o Bella Ciao.

-Mas e a Ave Maria?

-Foi proibida. Estamos estudando para mudar para “Ave, Companheira Maria”, mas não cabe no verso. O Chico Buarque está tentando, mas parece que vai passar para o Djavan.

Eu estava aturdido.

-O que mais mudou?

-Tudo. A bandeira agora é vermelha, com uma estrela branca – de Cuba – e a foice e o martelo. Os banheiros das escolas foram abolidos, agora é em público, todos juntos. E remodelamos a Mamadeira de Piroca, agora temos a Canequinha de Xavasca. Mas só meninas podem usar.

-Meu Deus…

-Por favor, companheiro, nos próximos dias ainda será permitida, até se acostumarem, mas essa expressão será proibida. “Meu” não existe mais, acabou a propriedade privada, e “Deus”, claro, não existe – e se existir, será exilado. Agora o correto é dizer, em caso de interjeição de espanto: “Nosso Stalin”. “Nosso Lula” também será aceito.

-Você pode sair para eu trocar de roupa?

-Ah, bem lembrado. Seu uniforme já está preparado, você passará, deixa eu ver… (consultou umas anotações) 29 dias num campo de reeducação, colhendo cana.

-Mas por quê?????

-Você tinha um iPhone.

-Pera, como? Tinha? Cadê meu telefone??????

-Companheiro, não existe mais nada teu, e os iPhones foram proibidos.

-E os androids?

-Também.

-Não tem mais celular?

-Tem. Xiaomi. Do básico.

-Meu D… Nosso Stalin!

-Pois é. O transporte está esperando, é fácil saber qual é. Um Lada novinho, vermelho, dirigido pelo companheiro Sidney.

-O porteiro?

-Não, agora ele é chefe da portaria e administrador do prédio.

-É, ele sempre foi competente. As coisas devem melhorar.

-Esse é o espírito! O comunismo é assim!

Saímos, descendo pela escada – o elevador estava desligado, falta de energia. No caminho, uma vizinha rodrigueana, gorda e patusca, gritou:

-Comunistas comem criancinha!

O barbudo tirou o charuto da boca, coçou a cabeça, e respondeu:

-Companheira, não comemos criança, nem adulto, nem índio. E, figurativamente, se algum companheiro disser que pintou um clima, vai para o paredão.

 



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Ricardo Dias

Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.

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