Acordei com calor. O ar refrigerado estava desligado. Estranho. Quando me dei conta, notei que havia um sujeito barbudo, fumando um charuto – excelente, por sinal – com uma fita métrica, medindo o ambiente. Me assustei, e ele disse que me acalmasse. Em espanhol!
Não sou capaz de reproduzir, meu espanhol é ruim, então sigo em português mesmo.
-O que você está fazendo aqui?
-Bom dia, companheiro. Viva a revolução!
-Viva. mas o que diabos você está fazendo aqui?
-Estou medindo a casa, para ver quantas famílias podemos alocar aqui.
-Hein?
-Sim, Lula ganhou, acabou a propriedade privada!
-Mas…
-Alegra-te, companheiro! É uma vida nova!
Nesse momento, o sino da igreja do bairro começou a rebimbar. Reconheci o Bella Ciao.
-Mas e a Ave Maria?
-Foi proibida. Estamos estudando para mudar para “Ave, Companheira Maria”, mas não cabe no verso. O Chico Buarque está tentando, mas parece que vai passar para o Djavan.
Eu estava aturdido.
-O que mais mudou?
-Tudo. A bandeira agora é vermelha, com uma estrela branca – de Cuba – e a foice e o martelo. Os banheiros das escolas foram abolidos, agora é em público, todos juntos. E remodelamos a Mamadeira de Piroca, agora temos a Canequinha de Xavasca. Mas só meninas podem usar.
-Meu Deus…
-Por favor, companheiro, nos próximos dias ainda será permitida, até se acostumarem, mas essa expressão será proibida. “Meu” não existe mais, acabou a propriedade privada, e “Deus”, claro, não existe – e se existir, será exilado. Agora o correto é dizer, em caso de interjeição de espanto: “Nosso Stalin”. “Nosso Lula” também será aceito.
-Você pode sair para eu trocar de roupa?
-Ah, bem lembrado. Seu uniforme já está preparado, você passará, deixa eu ver… (consultou umas anotações) 29 dias num campo de reeducação, colhendo cana.
-Mas por quê?????
-Você tinha um iPhone.
-Pera, como? Tinha? Cadê meu telefone??????
-Companheiro, não existe mais nada teu, e os iPhones foram proibidos.
-E os androids?
-Também.
-Não tem mais celular?
-Tem. Xiaomi. Do básico.
-Meu D… Nosso Stalin!
-Pois é. O transporte está esperando, é fácil saber qual é. Um Lada novinho, vermelho, dirigido pelo companheiro Sidney.
-O porteiro?
-Não, agora ele é chefe da portaria e administrador do prédio.
-É, ele sempre foi competente. As coisas devem melhorar.
-Esse é o espírito! O comunismo é assim!
Saímos, descendo pela escada – o elevador estava desligado, falta de energia. No caminho, uma vizinha rodrigueana, gorda e patusca, gritou:
-Comunistas comem criancinha!
O barbudo tirou o charuto da boca, coçou a cabeça, e respondeu:
-Companheira, não comemos criança, nem adulto, nem índio. E, figurativamente, se algum companheiro disser que pintou um clima, vai para o paredão.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Ricardo Dias
Tem formação de Violonista Clássico e é luthier há mais de 30 anos, além de ser escritor, compositor e músico. É moderador do maior fórum de violão clássico em língua portuguesa (violao.org), um dos maiores do mundo no tema e também autor do livro “Sérgio Abreu – uma biografia”.
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