Por General Fernando Azevedo e Silva*
A invasão da Rússia na Ucrânia é descabida, desnecessária e desumana. Começo pelo final.
Discorrer sobre atual guerra na Ucrânia trouxe-me reflexões significativas. Como conhecedor da arte da guerra, por formação, e neto de uma ucraniana, vejo o conflito com apreensão e me volto às tristes lembranças que a minha avó materna carregava.
Nascida em Boyarka, a 160 Km de Kiev, em 1905, minha avó procurou refúgio no Brasil. Nesta nova Pátria, encontrou o seu porto seguro e reconstruiu sua vida. Mas as memórias das sangrentas guerras e revoluções da Europa e da Rússia sempre estiveram presentes nos encontros de família. Vó Cecília viu o pai ser morto pelo exército vermelho na porta de casa. Nas tristes recordações, estava Holodomor (“deixar morrer de fome”): o genocídio de milhares de ucranianos vitimados pela fome, em razão da política de Stalin entre 1931 e 1933.
Como tantos brasileiros, corre nas minhas veias um pouco de outras culturas. Embora motivados pela emoção, conseguimos analisar os fatos sob diferentes aspectos. E aqui me volto à visão técnica e política dessa guerra.
Boaventura de Sousa Santos: Para uma sociologia das ausências – da Ucrânia a Gabriel Boric
Graças aos avanços tecnológicos, acompanhamos em tempo real tudo o que ocorre do outro lado do mundo. Sentimos as dores de um povo que, da noite para o dia, deixa para trás tudo o que construiu e procura abrigo em outros países, escapando dos mísseis e foguetes. São imagens fortes, que desacreditam a Rússia e unem os países contra a obstinação de Vladimir Putin. Em pleno século XXI, o conflito confirma que o campo de batalha se expandiu para além do terreno tradicional. A guerra assimétrica ou híbrida, como queiram chamar, desenvolve-se em diversos espectros. Às ações militares por terra, ar e mar juntam-se diversos componentes importantes e decisivos, como a Guerra Cibernética, a Comunicação – com sua batalha de narrativas e redes sociais -, as sanções econômicas e os reflexos desses fatores na economia mundial, entre outros.
Os estrategistas russos avaliaram que a invasão da Ucrânia seria uma operação rápida e cirúrgica. Bastaria um bombardeio inicial, um ataque limitado por terra, para neutralizar o “inimigo”. Ledo engano. A Ucrânia resiste bravamente. Sua voz ecoa. Aos russos não coube outra alternativa a não ser replanejar suas ações: a invasão em si, em que o poderio bélico russo é muito superior, e a ocupação do possível território anexado. Essa segunda fase é difícil e custosa, pois pode surgir, como é previsível, uma guerra insurrecional, de guerrilha e combates urbanos desgastantes, com consequências e duração imprevisíveis. A exemplo do que ocorreu no Vietnã, onde franceses e americanos, apesar de toda superioridade militar, foram obrigados a deixar o País.
As raízes do embate de Rússia e Ucrânia remontam a um passado recente. No aspecto político mal resolvido com o decorrer dos anos. Após a 2ª Guerra Mundial, o mundo ficou dividido entre capitalismo e socialismo. No contexto da guerra fria, foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com o objetivo de garantir a segurança dos países membros. Em contraponto, a então União Soviética (URSS) e os países socialistas selaram o Pacto de Varsóvia.
Na década de 90, com a queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética, o Pacto de Varsóvia foi extinto, como parte do Acordo entre os Estados Unidos e a Rússia, iniciando uma nova ordem mundial. A OTAN, liderada pelos EUA, iniciou a sua expansão para o leste Europeu, ampliando o número de países membros de 12 para 30, sendo muitos desses antigos integrantes da extinta URSS. O rearranjo no tabuleiro mundial incomodou a Rússia, que investiu suas ações iniciais para anexar a Geórgia e a Crimeia. Mas, somente a obstinada, e injustificada, vontade de Putin de reconquistar a preponderante influência da Rússia no leste europeu explicam esta guerra.
O tempo é o Senhor da razão! Mas e a posição do Brasil nessa história toda? Não há dúvidas do que diz a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 4º, sobre as relações internacionais do Brasil: “a prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, não-intervenção, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos”. Mas a ação da Rússia se encaixa nisso? Houve uma intervenção “amigável”? E a prevalência dos direitos humanos e a defesa da Paz? Sem dúvida alguma a resposta é não! E essa é a postura que se espera das nossas autoridades em relação ao conflito.
A posição das Nações Unidas foi categórica, recriminando a Rússia, acompanhada pelo representante do Brasil na ONU, mas faltou uma posição mais enfática internamente. Um país invadiu o outro, colocando em risco a paz mundial. Riscos de uma guerra nuclear existem e não podemos nos omitir.
Nesse mesmo contexto, setores da sociedade brasileira precisam despertar para a realidade. O conflito entre Rússia e Ucrânia nos mostra que um país soberano requer Forças Armadas fortes, capazes de garantir a sua defesa. Defender e proteger um país continental, com tantas riquezas como o Brasil, é um trabalho constante que precisa do entendimento do nosso povo. Com a estatura geopolítica do Brasil no Continente Americano, os assuntos de defesa não podem ficar a mercê de embates ideológicos, de discursos vazios. Deve ser um compromisso da sociedade brasileira e das principais autoridades do País e não apenas uma preocupação do Ministério da Defesa e das Forças Armadas brasileiras. Precisa urgentemente ser um compromisso da Nação Brasileira, uma política de Estado.
A Política Nacional de Defesa (PND), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de Defesa, foram enviadas ao Congresso Nacional em 2020, conforme determina a Lei, após apresentação ao Conselho de Defesa Nacional. Assim a sociedade brasileira pode ver e opinar sobre as necessidades e a importância da defesa para o nosso País. Precisamos entender a importância da nossa boa e competitiva Base Industrial de Defesa. Ela deve ser incentivada e preservada, pois produz materiais de defesa estratégicos, que em caso de necessidade abastece as principais necessidades internas. Em tempos de paz, muitos dos produtos e tecnologias são adaptados para uso da população em diversos setores.
E a capacidade operacional da nossa Marinha, Exército e Força Aérea? Precisa urgentemente ser atualizada e modernizada e estar em condições de responder imediatamente, com toda a sua capacidade, sempre que demandadas pela Nação. A capacidade de dissuasão é fundamental. Nossos projetos estratégicos não podem mais ficar à mercê da boa vontade do orçamento. O investimento não é em vão. Gera-se tecnologia, emprego e renda.
Nas palavras de Rui Barbosa, “O Exército pode passar cem anos sem ser usado, mas não pode passar um minuto sem estar preparado”.
* Fernando Azevedo e Silva é General de Exército, ex-Ministro da Defesa e neto de Ucraniana.
Confira também!
Assista ao debate sobre as causas e consequências da guerra na Ucrânia com os ex-Ministros General Fernando Azevedo e Silva e General Sergio Etchegoyen, o Diretor do IREE Rafael Valim e Presidente do IREE, Walfrido Warde!
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