O velho guerreiro Leonel Brizola costumava dizer: “Se algo tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré, pé de jacaré, olho de jacaré, corpo de jacaré e cabeça de jacaré, como é que não é jacaré?”. A sabedoria de um homem que enfrentou golpes, organizou a Campanha da Legalidade para assegurar a posse de João Goulart e que chegou a armar o povo para a resistência democrática certamente hoje, se aqui estivesse, nos levaria ao alerta.
Bolsonaro construiu sua carreira como defensor da ditadura, assim também fez sua campanha presidencial e, desde 1 de janeiro, assim governa. Como presidente, chamou o torturador Brilhante Ustra de herói nacional e convidou sua viúva para um almoço no palácio; ofendeu a memória de Fernando Santa Cruz, assassinado pela ditadura; defendeu “cana” para um jornalista que o contrariava, sem contar as ameaças diárias à imprensa e a opositores. Seus filhos ainda foram além: um deles disse que a mudança que querem para o país não seria possível pela via democrática e outro evocou a necessidade de um novo AI-5.
Poderia ser apenas bravata, a criação de cortinas de fumaça para desviar a atenção do desastre de seu governo e das mais que suspeitas relações com os milicianos e assassinos de Marielle Franco. Mas não. Basta olhar com alguma atenção as opções políticas de Bolsonaro.
Desde a posse, seu objetivo não é governar. A todo momento constrói conflito com as instituições, inclusive com seu próprio partido, não construiu qualquer base parlamentar e não parece sequer preocupado em ter maioria na sociedade. Atua para fidelizar e radicalizar seu núcleo duro. Governa com a estratégia da guerra permanente. Cercou-se de militares no entorno, recheou sua agenda pública de formaturas de cadetes, paraquedistas e outros pretextos para contato direto com a tropa, enfim, visivelmente tensiona a institucionalidade sugerindo saídas autoritárias. Tem rabo de jacaré, couro de jacaré, boca de jacaré…
É evidente que entre intenção e gesto há longos passos. Hoje Bolsonaro não teria força e nem pretexto para uma ruptura institucional, fosse ela com o tradicional fechamento de instituições ou pelo caminho mais esguio – e provável – da tutela. Mas quer. E tenta.
Não há como não ver suas atitudes e de seus filhos dentro de uma estratégia de “aproximações sucessivas”, tal como declarado no ano passado pelo General Hamilton Mourão. Ou seja, ao trazer assuntos antes impensáveis ao debate, os tornam possíveis e testam as reações da sociedade. Exaltar torturadores e imaginar um novo AI-5 eram coisas impensáveis no Brasil há bem pouco tempo. Hoje estampam as capas de jornais. Com isso, o absurdo vai se naturalizando e as reações sendo medidas e neutralizadas. As aproximações sucessivas estão em curso.
Como notou Polônio, sobre Hamlet, há método na loucura. Os desatinos de Bolsonaro, orientado desde a campanha eleitoral por um círculo próximo de generais da reserva, de gurus da guerra virtual e consortes, visam metas autoritárias.
Nunca é demais recordar sua herança política na pior ala do Exército brasileiro, autoritária na política e entreguista até a medula. Bolsonaro se inspira em Sylvio Frota, general que se opôs à transição democrática, acusou Geisel de leniente com os comunistas e tentou armar um golpe dentro do golpe. A carta-manifesto de Frota, publicada após sua demissão em 1977, poderia ter sido escrita por qualquer bolsonarista letrado. Aliás, não por acaso, seu ajudante de ordens era um certo capitão chamado Augusto Heleno. O tempo passa e as pessoas permanecem as mesmas.
Diante dos fatos, seria um erro subestimar os riscos. O mesmo erro que o PCB de Luis Carlos Prestes cometeu na véspera do golpe de 1964. Poucos dias antes do fatídico 1 de abril, Prestes fez um discurso acalmando a militância e acusando de alarmistas os que falavam de uma intervenção militar. O golpe encontrou a esquerda desarmada, sem capacidade de resistência. Em momentos decisivos, um erro de análise pode ser fatal, ainda mais quando subestima os adversários.
Não podemos cometer o erro da subestimação e tampouco, é verdade, o da superestimação. Bolsonaro não tem força para uma ruptura hoje e talvez não venha a ter, embora se movimente nessa direção.
Cabe à esquerda brasileira, além de alertar os riscos à sociedade, aquecer as ruas do país para a construção de um movimento que derrote Bolsonaro e suas ambições autoritárias. As instituições mostraram nos últimos anos que, se deixadas por conta própria, não representam um contrapeso democrático suficiente. As ruas precisam gritar e pressionar. A capacidade de resistência social é o maior antídoto que temos ao bolsonarismo.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Boulos
É professor, diretor do Instituto Democratize e coordenador do MTST e da Frente Povo Sem Medo.
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