O ano de 2020 registrará um déficit fiscal histórico como consequência das medidas para o enfrentamento da pandemia da COVID-19.
De acordo com o Relatório de Acompanhamento Fiscal da Instituição Fiscal Independente (RAF-IFI), as medidas extraordinárias ampliaram os gastos em R$ 573,5 bilhões. O maior destaque foi o auxílio emergencial, que injetou R$ 258 bilhões nas mãos das famílias brasileiras e foi fundamental para evitar que a crise sanitária se tornasse uma insuperável crise social.
Do ponto de vista das receitas, a recessão projetada em 4,5% do PIB para 2020 teve impacto na retração das receitas tributárias, que apresentaram queda de 11% em relação a 2019, contribuindo para um déficit primário esperado de R$ 779 bilhões.
O caso brasileiro não é exclusividade no mundo. A grande maioria dos países elevaram os gastos públicos, totalizando um volume de despesas que chegará a US$ 12 trilhões, segundo o monitor Fiscal do FMI.
Tanto países desenvolvidos quanto em desenvolvimento viram seus resultados fiscais se deteriorarem e a relação dívida/PIB aumentar na esteira da recessão e da necessidade de financiar medidas sanitárias e sociais de combate à crise.
O que diferencia o Brasil da maioria desses países não é a trajetória dos resultados fiscais, tampouco o “ponto de partida” destes indicadores, que mesmo após apresentarem severa deterioração nos últimos 5 anos não poderiam ser considerados um ponto fora da curva da média global.
O que nos diferencia de nossos pares globais é nosso apego ideológico (quase religioso) a austeridade fiscal, mesmo diante da evidente crise social que ela nos trará, caso a retomemos em um quadro de crise econômica e elevado desemprego.
Na literatura econômica o termo “abismo fiscal” dá conta de situações em que, dado um desequilíbrio orçamentário, regras fiscais impõe uma retração dos gastos públicos que terão um efeito recessivo em uma economia com baixo crescimento. Tradicionalmente este termo é usado para explicar o caso americano, onde a possibilidade de abismo fiscal se coloca de forma recorrente, dada a necessidade de negociar a expansão do teto de endividamento estabelecido pelo Congresso.
As regras fiscais brasileiras, antiquadas e mal formuladas, ameaçam criar uma versão tupiniquim do abismo fiscal em 2021. Caso o Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) enviado pelo governo seja aprovado, o país enfrentará uma contração fiscal que poderá alcançar 7% do PIB, a depender do comportamento do PIB e das receitas públicas.
Um choque dessa magnitude em uma economia deprimida e que seguirá enfrentando as incertezas decorrentes da pandemia, além de taxas de desemprego e subutilização da capacidade produtiva elevadas, beira a insanidade.
As consequências econômicas e sociais de uma retomada da austeridade podem ser devastadoras: o fim do auxílio emergencial sem a substituição por um programa reforçado de transferência de renda poderá provocar um rápido crescimento dos indicadores de fome e pobreza, além de enfraquecer a demanda das famílias.
O baixo nível do gasto discricionário poderá provocar um colapso em diversos serviços públicos fundamentais e o minguante investimento público contribuirá para deterioração do emprego e da infraestrutura, num momento em que o país precisará desesperadamente de ambos.
A lógica desapegada de doutrinas e ideologias exigiria do país um exercício de repensar e atualizar suas regras fiscais visando evitar o abismo fiscal que se aproxima.
Um governo pragmático teria utilizado os últimos meses para, amparado pela força dos fatos e da experiência internacional, propor a substituição das regras fiscais vigentes por novas regras mais adequadas, flexíveis e capazes de coadunar estabilidade fiscal com responsabilidade social.
Na ausência de ação propositiva do governo, a oposição tomou para si essa responsabilidade através da PEC 36/2020 apresentada pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), que flexibiliza o teto de gastos nos próximos dois anos (abrindo espaço para gastos com transferência de renda, serviços públicos fundamentais e investimentos) e altera o conjunto de regras a partir de 2023.
É um excelente ponto de partida para o parlamento debater alternativas reais para evitar o abismo fiscal, social e econômico que a perspectiva de retomada da austeridade representa.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Guilherme Mello
É economista e sociólogo, com mestrado em Economia Política pela PUC-SP e doutorado em Ciências Econômicas pela Unicamp. É professor do Instituto de Economia da UNICAMP e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/UNICAMP. Foi assessor econômico para a campanha de Fernando Haddad à Presidência da República em 2018.
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