Nos tênues limites entre a vida e a morte destes últimos dois anos, aqui chegamos vivos e lidando com o real que não cessa de nos convocar. Impossível esquecer a imagem de incontáveis covas sendo abertas, de centenas de milhares de corpos sacrificados e da aniquilação de nossos sentidos de existência.
Relembro as perguntas fundamentais de “É isto um homem?”, livro de 1947 em que Primo Levi aborda suas experiências no campo de concentração de Auschwitz, onde se defrontou com o incompreensível. Guardadas as devidas diferenças da dimensão traumática, estamos também frente a algo próximo do irrepresentável. Diante de uma experiência impossível de ser expressa em alguma linguagem, escreve Primo Levi: “A nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, esta aniquilação de um homem”.
É possível narrar o impensável de um trauma? Em “Um percurso da psicanálise à literatura”, Jacques Aubert traz seu contundente testemunho: “A morte aniquila o poder de representação das palavras. Revela sua insuficiência e impotência”. Para Aubert, após a experiência do trauma o sujeito experimenta “uma catástrofe significante sem precedentes”. A linguagem entra em pane.
Então, é assim que escrevo: tentando fazer algo com o que há de insuperável. Trata-se de escrever o que não pode ser escrito, estando à altura de uma convocação ética que captura, a um só tempo, o detalhe, o absurdo e o destino. É preciso ao menos tentar balbuciar o espanto e o intransponível de tantas perdas. Escrever se tornou a via possível de abrigar as intransponíveis zonas de opacidade e, assim, seguir.
Primo Levi relata um sonho: “Estou sozinho no centro de um nada cinzento e perturbador”. O sonho termina quando uma voz conhecida pronuncia uma única e terrível palavra: “Levanta-te!”. No choque entre a linguagem e o vazio, tatear com as mãos o mistério da vida, de tantas vidas, atravessar o fogo e a neblina e, mesmo de forma errática, seguir rumo a algum sentido de utopia.
O luto tem muitos momentos. É um trabalho incessante de deixar cair para que algo novo possa ganhar espaço. A perda de referências que garantiam a ilusão narcísica hegemônica, o reconhecimento radical do outro, a morte de amigos, parentes e conhecidos, a destruição de inumeráveis vidas, a aniquilação dos valores democráticos e a vertigem de viver em um estado totalitário. Mesmo depois de quedas sucessivas, tudo ainda pode ganhar algum contorno.
Em “O ano do pensamento mágico” – e depois, em “Noites azuis” – Joan Didion escreve sobre perdas radicais. À perda do marido viria, a seguir, a morte da filha que, aos 39 anos, recuperada de pneumonia e fora do hospital, sofreu uma queda e não resistiu às consequências do traumatismo craniano. O luto de Didion é duplamente avassalador, mas algo em sua escrita instala o que tateio aqui: o sentido de utopia. Ela diz: “Sabemos que alguém perto de nós pode morrer, esperamos sentir um choque, mas não esperamos que este choque desloque nosso corpo da nossa mente”.
No território da canção nada é mais preciso e precioso do que “Cajuína” para dizer sobre o que toca uma perda profunda e recoloca algo da invenção. Com a música de Caetano Veloso e o documentário “Torquato – todas as horas do fim”, filme primoroso e de fineza impressionante, pude entender com clareza a estreita linha do luto e da melancolia.
O insondável da vida e da morte, a força da arte em sustentar um ponto de subversão do sujeito que não cede de seu desejo, o desfiladeiro da língua, a insistência do real. Todas essas questões, que Torquato Neto radicalizou em vida – e em seu último gesto – ganham nova espessura neste momento político em que carregamos e arrastamos tantas dores, em que cada corpo também participa de forma agônica da escrita do país. O filme abre com uma pergunta sobre o suicídio, e é também uma bela e aguda homenagem ao mais vivo que há: essa possibilidade de mover-se no impossível e, ainda assim, escrever uma obra. Há algo da morte mas, sobretudo, da própria vida que nunca acessaremos completamente. Suspeito que, neste mistério absurdo, em que repousa o instante exato do abandono de tudo, exista muita vida: a tentativa derradeira de fazer existir algo onde tudo parece deserto. Impossível não escutar o próprio Torquato sussurando sua resistência trêmula e hesitante: “É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer”.
“Cajuína” surgiu no encontro de Caetano com o pai de Torquato. Ao derramar as lágrimas guardadas, o cantor foi consolado com grande ternura pelo pai do amigo, que lhe oferece uma rosa colhida do quintal e lhe serve cajuína: gestos que reinventam a vida e, pela força da criação, irradiam coletivamente. A canção surgiu no dia seguinte, na estrada: oito versos de rara beleza, em que se questiona a efemeridade da vida, de belezas e mistérios, expressando a complexidade do intraduzível. Um artista que vive à altura de seu tempo, ao reinventar o próprio corpo e o destino, Caetano marca um lugar possível para a construção do comum e ensina sobre algo essencial da invenção, conjugando leveza e senso de gravidade. Um corpo político tensiona o mundo e é por ele marcado.
O sentido que criaremos como país passa incontornavelmente por cada corpo e é preciso que as feridas façam parte dessa escrita. É preciso chegar ao aberto do mundo e lidar, pessoal e coletivamente, com um trabalho de luto que nos convoca eticamente na urgência e na gravidade do que agora se coloca: que cada sujeito possa encontrar espaço para a singularidade.
Caminhando pela cidade, uma imagem me toca de maneira incontornável: na calçada, um homem se deita sobre papelão e cerca sua cama com pedras e arbustos, criando uma delimitação simbólica do que seria seu lugar no mundo. Uma cena comovente, dolorida, que revela a imensa travessia ainda a ser feita.
Filmes, canções e livros nos fornecem meios para lidar com essas feridas, mas há o indizível, o aberto do mundo, o incontornável do sem sentido que pede a urgência de atos que possam reconfigurar o país, nosso entorno e nossa forma de habitar e coabitar a cidade. É preciso atravessar a morte e o tremor da existência.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Bianca Coutinho Dias
É psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
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